sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Quando fiz minha primeira faculdade, que ficou incompleta, tinha a professora que falava de Adorno, que pra mim era só um nome bizonho e engraçado, de pouco respeito. Mas fiquei atenta e atônita quando, em sua conversa sobre o autor, ela exibiu "Arquitetura da destruição", documentário sobre a Alemanha nazista. Que horror, pensei, ainda bem que isso de nazismo ficou pra trás. A gente sempre quer se aliviar do peso da realidade mesmo que seja fechando os olhos para ela ou, como diz a sabedoria popular, tapando o sol com a peneira. Eu era menina jovem, recém saída do interior para morar e estudar na capital e pensava, naquele tempo doce, que o auge do que mais tarde descobriria como "mal-estar na civilização", ufa, já havia passado e era, portanto, passado. Como se a humanidade já houvesse atingido o auge da barbárie, que não teria porque se repetir. Sabia de nada, eu, a inocente. 

Tinha também a professora que falava de Benjamin. Ela não falou sobre "escovar a história à contrapelo", sobre isso descobri bem mais tarde, mas ela falava de arte, da "obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". Uma conversa toda difícil que me fez pensar no quanto, em minha vida, os desenhos animados tinham sido importantes para me aproximar da música clássica. Eu não conseguia entender aquele parlatório todo da aula e, como tudo era festa, não me esforçava para isso. 

Arquitetura da destruição:


O coelho de Sevilha: 



segunda-feira, 20 de julho de 2020

Dark

Como usar a série DARK em suas redações?

 "Sofreu assim no exílio, procurando a maneira de matá-la com a sua própria morte, até que ouviu alguém contar a velha história do homem que se casou com uma tia que, além disso, era sua prima, e cujo filho acabou sendo avô de si mesmo." (Cem anos de solidão, Gabriel García Marquez)  

É tarde, o frisson já passou, mas eu também quero escrever algo sobre Dark.

Algo pouco, viés. Pequeno olhar, ou quem sabe delírio, sobre uma cena que ilumina a obscura trama. Na metade da terceira e derradeira temporada, no quarto episódio, a revelação: o estranho do lábio leporino, o sem nome, que é três, passado presente e futuro que caminham juntos, o vemos escrevendo. E ele escreve o que? Um livro. Espécie de Melquíades, ele escreve o livro que, de tanto figurar nas mãos do pastor Noah, ganha ares de Sagrada Escritura. E é. "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus", lê-se no Evangelho segundo João, na nossa bíblia. "O começo é o fim, o fim é o começo", é como Ele, o estranho, passado presente e futuro que caminham juntos, arremata a sua.

Na capa, a triqueta, símbolo que representa a Santíssima Trindade (na mitologia cristã), o Infinito, a Eternidade... Sic Mundus Creatus Est. No conteúdo da obra, começo meio e fim, coordenadas de como aquela trama, aquele drama todo deve se desenrolar por todo o sempre ( tal livro é a "bíblia", a "teogonia" que rege o mundo de Jonas/Adam; deve haver outro, um livro espelho, que rege o mundo de Martha/Eva). O Estranho, passado presente e futuro que caminham juntos, Ele é o começo, a origem, o nó. Sem nome próprio, e ele mesmo conta que nunca recebeu um, na única cena em que é visto abraçando sua mãe, Martha, é para o espanto desta. O abraço é mal correspondido. Sozinho, ele só interage consigo mesmo, ainda que através de outros. E tudo em seu mesquinho universo de mundos espelhados existe para que a tragédia que Ele é ocorra repetidas, infinitas vezes. Parece uma neurose.

Mas como Ele não viu que uma só Cláudia transitava dois mundos? É que enquanto Ele, como um bebê, tá lá no esforço de fazer com que o mundo dos pais gire por causa e em torno dele, Ele não vê. Esse sujeito é falho, um Deus nem onipotente, nem onisciente, nem onipresente. Assim como o Eu/ego não é senhor em sua morada, lembro-me aqui de Freud, Ele não é senhor em seu próprio universo, há uma falha. Cláudia.

Na cena seguinte, o momento de sua concepção: sem banho, ao som triste e melancólico da bela canção de Asaf Avidan, Jonas e Martha transam e ela engravida daquele que será seu bisavô. O looping que se repete over and over está contido ali, no encontro de dois mundos que se originaram da explosão de um terceiro, original, fora do tempo que forma o nó, entretanto, verdadeira causa deste. A música é espetáculo a parte: The labyrinth song é o lamento de um Teseu que canta para sua Ariadne, "oh Ariadne, eu falhei com você neste labirinto do meu passado." Quem nunca? E sim, tem o adorável nada por acaso detalhe de que o mito grego do Minotauro, no qual Ariadne liga-se e guia seu amado através de um fio pelo labirinto da besta fera, é referência constante na Série. E o que é Dark senão amontoado de pessoas perdidas no labirinto de um passado que imprime supostos futuros já de antemão determinados? Ok, é mais que isso. Mas parece uma neurose.

Em tempo, na mesma cena: enquanto Silja (irmã de Cláudia e Jonas, tia-vó de Bartosz, que será pai de seus filhos Noah e Agnes) vai, ainda na barriga de sua mãe, não se sabe para onde, Cláudia aproveita a bela trilha sonora e vai lá ter sua primeira relação sexual com Tronte, seu trineto (seria nada estranho um bebê com rabo de porco ter aparecido nesse rolo todo). "Sorte" que não é dele que Cláudia engravida, caso contrário, ela e sua filha Regina estariam, tal como os outros, irremediavelmente presas ao nó, àquele Universo de dois mundos que jamais deveria ter existido, falha na Matrix. 




quarta-feira, 8 de julho de 2020

O mundo anda tão complicado

Adoro as músicas da Legião Urbana que cantam sobre o simples, sobre o cotidiano. Um pé atrás: quando gosto de uma música na maioria das vezes é porque algo do som agradou-me, a melodia, se posso assim dizer. Mesmo naquelas cantadas em português, o que chega primeiro são os instrumentos musicais, voz aí incluída sim, mas como blá blá blá, nhem nhem nhem. Talvez por isso nunca tenha conseguido acompanhar a paixão de que sofre minha bolha pela MPB. 

Mas, retornando ao que dizia, adoro a poesia simples, que canta o cotidiano, de certas canções da Legião. E como "o mundo anda tão complicado", tenho pensado muito nesta música com a qual tanto me identifico, que fala de um momento tão gostoso: quando dois, do jeito que podem, juntam-se para partilhar uma vida sob o mesmo teto, deixando "a segurança do seu mundo por amor". É isso. 



 

domingo, 31 de maio de 2020

Vejam só, que bonita a forma como Dostoiévski  escreve sobre lembranças infantis ao narrar sua personagem que perdeu a mãe aos três anos de idade e que conserva desta a lembrança de seu rosto e de seus carinhos. Escreve ele que as lembranças infantis "podem ser conservadas (e todo mundo sabe disso) desde a mais tenra idade, até desde os dois anos, mas durante toda a vida só se manifestam como uma espécie de pontos de luz saídos das trevas, de um cantinho de um imenso quadro que se apagou e desapareceu por inteiro, excetuando-se apenas esse cantinho." Achei bonito isto, fez-me pensar no Freud das lembranças encobridoras e no quanto esses cantinhos iluminados da memória são fotografias que recobrem enquadramentos psíquicos que nos perseguem, que se reatualizam e se eternizam no moldar nossa realidade, sempre psíquica. Na lembrança que este garoto guardou de sua mãe, ela esta muito aflita, chorando, o abraçando à ponto de machucar e, desesperada, o ergue em direção à imagem de Nossa Senhora, como quem o entrega para que a Virgem o proteja. "Que quadro!", escreve Dostoiévski. Será acaso tal personagem tornar-se noviço? À propósito, estou falando de Aliócha Karamazov. 



terça-feira, 31 de março de 2020

Pandemia I - Ela

O que mais lhe chama a atenção é que, passados quase 15 dias de isolamento, suas noites tem sido ótimas, quer dizer, tem dormido muito bem. O medo de perder quem mais ama, o medo do depois, a realidade tem sido paralisante. No entanto, dorme feito bebê. Nada daquele acordar no meio da noite com o coração disparado, tão típico de seus dias de angustia. Sono pesado, sono gostoso. Sonha. Sonhos que se sabem sonhados mas dos quais se esquece. Leu dia desses em Freud que esses são os sonhos que melhor cumprem sua função, que é a de manter o sono [1]. 
Sua primeira reação diante do vírus foi querer sumir do mundo. Tem um pouco de preguiça, talvez seja inveja, daqueles que desde o primeiro dia de quarentena tinham algo para dizer ou fazer dela. Ela, ela não sabe de nada. Entende o que está acontecendo, mas não compreende. Porque, lá no seu fundo mais apavorado, acredita que isto tudo só será compreendido depois. O que não impede as pessoas da tentativa de simbolizar o que é e o que virá disso tudo, é, deve ser inveja o que ela sente. Inveja e admiração. Porque ela não consegue. O que consegue é visualizar a última cena de Melancolia e desejar que acontecesse. É um desejo mentiroso, mas vejam que interessante: ela não quer morrer, não sozinha. Antes, deseja que se for para Um dos seus morrer, que todos pereçam, tamanho é o medo do que virá depois. 
Mas ela dorme feito bebê (aqueles raros, que dormem a noite toda). Goza, na dependência de um homem. 

[1] - FREUD, S. Alguns complementos à interpretação dos sonhos. Obras completas, vol.16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 320: "Segue-se que para o Eu que dorme é indiferente, no conjunto, o que durante a noite é sonhado, desde que o sonho realize sua incumbência, e que os sonho de que nada sabemos dizer após despertar são aqueles que melhor cumpriram a sua função." 
31-03-2020.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Em uma análise não se trata de encontrar a parte que falta, mas de fazer da falta que nos habita causa que impulsiona, causa de desejo. "Não ceder de seu desejo" é poder perceber para que lado Eros aponta e caminhar corajosamente nesta direção.





domingo, 16 de dezembro de 2018

Em um marca-páginas precioso está escrito que "Não há amigo mais leal que um livro". Isto, como toda verdade, não é de todo verdade, a começar pelo fato de que nem todos estão dispostos a amigar-se ou tornar-se amante, investir libido na literatura. Triste realidade? Diga-me você, mas fato é que a crise editorial que o Brasil atravessa neste exato momento atesta isso. Ler funciona para alguns e parece que não são muitos. Ou seria verdade que os leitores estariam migrando para formas não impressas de leitura? Pode ser, mas  os memes e o youtube fazem mais sucesso que downloads de livros... Bem, para estes alguns, sim, o livro é o provável amigo mais leal que pode existir. Mesmo quando nos trai as expectativas, pois não importa: a mobilização de afetos, sua transformação e destino final, quando se experimenta alguma literatura, penso que é o que importa.
   
... 

E assim, por vezes gosto de centrar-me nos problemas ínfimos e ilusórios que a vida psíquica me impõe. No momento ocorre uma briga que deveria ser de Titãs mas que se assemelha, não sei bem o por que, à uma briga de galos. A luta parece-me desigual, e o vencedor anunciado antes do fim é Gabriel García Márquez. Nabokov foi o primeiro a subir no ringue, com sua Lolita, e apenas Lolita. Lo-li-ta. Para mim, às vésperas de terminá-la (e sempre sou assaltada de bizarra ansiedade ao aproximar-me do fim de uma história), apesar de algum encanto, Chatita. Terminar o livro, questão de honra, não de gosto, sob a interrogação do porque este seria um clássico, é isso e apenas isso o que acredito mover-me. A cada duas das intermináveis páginas, o afeto não quero te ver tão cedo, típico de um amor clandestino do qual se goza sem querer admiti-lo, aflora. Neste percurso, quase que num tropeço, cruzei com uma declaração de Nabokov sobre Dostoiévski, segundo o qual seria um escritor de terceira categoria e com fama incompreensível. Que audácia! Que ódio, que raiva! Quem é este homem de escrita pedante, redundante, que não sai do lugar, para falar semelhante asneira? Desgraçado, Nabokov idiota, cara de mamão, sim, vou te xingar feito uma lolita! Foi momento de deixar a leitura de lado, aquela heresia abriu-me a porta da traição. Foi nessa agonia que Gabriel apareceu com suas Memórias de minhas putas tristes. 

Ali encontrei poesia, numa história que, contada sob outra forma, facilmente se classificaria como repugnante. Mas espere aí: o mesmo pensamento pode se aplicar à Lolita. Pois o problema de Lolita é que, a despeito da não-fluidez do texto, cansativo e arrastado pacas, há algo ali que, antes de repugnar, perturba. E excita. Repare bem, mulher, na Lolita que te habita,  e nos inúmeros Humbert Humbert que desfilam pelo mundo. Falo de espíritos: no corpo físico, nem toda Lolita é criança, nem todo Humbert Humbert é  um quarentão. A realidade é e sempre será psíquica. 

Mas sigo Nabokov nesta batalha desleal, para ver onde vai dar, e até o momento sequer descobri quem é, segundo Lacan, o verdadeiro perverso da história. Como o livro termina, ainda não sei. Mas o fim de Memórias de minhas putas tristes, não demorou dois dias para chegar e, sedenta de Gabriel, logo Cem anos de solidão caiu em minhas mãos. Menos de 50 páginas e eu já estava hipnotizada, jurando amor eterno, e foi aí que o galo Nabokov, ensanguentado, como que atravessado por uma lança, deitou-se morto no ringue. Porém, graças à seu fantasma, terminarei de ler Lolita, enquanto perambulo insone por Macondo...


Macondo. 


   



quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo.

Tive um sonho, não tão belo quanto o de Martin [1], mas ainda assim um sonho. Em tempos sombrios, que parecem encobrir uma escuridão ainda maior porvir, sonhar, quando é possível dormir, costuma ser a melhor parte. 

No sonho, estava eu em Belo Horizonte, na praça Roosevelt (Existe por lá uma praça com este nome? Não sei, não importa, o trabalho do sonho segue seu próprio caminho de distorção). Estavam comigo nesta praça pessoas que lutam e que desejam outra coisa que não um Outro que autoriza e incentiva a violência, o discurso da segregação e cuja política econômica objetiva ferrar os trabalhadores (não se enganem!). Pessoas que, assim como eu, estão aflitas, com medo. 

Todos sabem ou deveriam saber: os sonhos são a realização, distorcida, de desejos inconscientes. Tal distorção requer muito trabalho, o "trabalho do sonho" no léxico freudiano. Em um de seus textos tardios encontrei uma formulação interessante, que corrobora aquilo que se percebe na clínica psicanalítica: em seu âmago o sonho expressa um desejo sexual infantil recalcado, ok. Mas em sua interpretação é possível encontrar várias camadas de significação, algumas mais superficiais, que expressam desejos imediatos, nem tão inconscientes assim. Segundo Freud "há dois tipos de motivo para a formação do sonho. Ou uma moção de impulso normalmente reprimida (um desejo inconsciente) encontrou durante o sono a força para se fazer valer no eu, ou uma aspiração que sobrou da vida de vigília, uma sequência pré-consciente de pensamentos com todas as moções conflituosas a ela ligadas, encontrou no sono um reforço por meio de um elemento inconsciente. Ou seja, sonhos provenientes do isso ou do eu."[2]

É como se meu Eu, menos inflado após tantos anos de análise, mais humilde e permeável ao saber inconsciente, tivesse-me dito ao Isso: Ajude aí cara, acalme a moça!! Explico-me: é que ao despertar lembrei-me imediatamente de um texto que lera na véspera [3]. Nele havia a citação de uma frase proferida por Roosevelt em seu primeiro discurso como presidente dos Estados Unidos: "A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo". Seria este o Belo Horizonte?  




quinta-feira, 18 de outubro de 2018

R-existir em Dourados

Na noite de ontem, o Seminário de Literatura e Psicanálise que conduzo em Dourados/MS seria sobre Hamlet; foi sobre outra coisa.
"Estou morta", diz uma participante. To be or not to be? Resistir.
Não foi sobre Hamlet, foi sobre democracia. 
No ato, o encontro tornou-se uma roda de conversa, não inesperada, mas sim, necessária.
A fala circula, cria corpo, ganha vozes, experiências são trocadas. Resistir.
Freud se faz presente: Por que a guerra? Que mal-estar é esse que vivemos hoje na cultura? Como entendê-lo, enfrentá-lo? A sexualidade permanece como questão, sintoma. Cadê os 3 ensaios sobre a teoria da sexualidade para nos ajudar a entender por que o kit gay, que não existe, insiste no discurso falacioso de quem quer nos silenciar? Daqueles que, tal como Édipo-Rei, último texto por nós estudado, não querem saber, não querem escutar? Resistir.
Mas como é r-existir em Dourados? Você sabe o que é Dourados? "Ruas feitas todas de flores e um pouco de sangue, isso é Dourados; índio não entra no Shopping que branco não gosta, isso é Dourados" [1] Pacientes, amigos, laços familiares perdidos. É o preço por posicionar-se publicamente. Não recuaremos! Os ouvidos têm paredes, de nada adianta gritar [2]. Como então sussurrar até que nossa voz atravesse as frestas das paredes dos ouvidos moucos?
TEAR DOWN THE WALL, nos grita Roger Waters, derrubem as paredes, derrubem o muro!
Chegamos ali, naquela noite quente, como ilhas. Ilhas isoladas num mar de ignorância e, porque não, canalhice. Mas por força das palavras, do ato de nos abraçar via palavra, nós, ilhas, nos movemos à ponto de formar um pequeno continente. Se o significante mestre for a democracia, vale à pena fazer grupo.
Por fim, outra participante traz Drummond:
Mãos dadas
"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente."
Saímos de lá. Vivos!
Francina Sousa.
#Haddad13
[1] - Dourados state of mind, Ruspô. Escutem:  https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGRRiw
[2] - Tiranias, Ruy Proença.

domingo, 22 de julho de 2018

A ovelha mágica

Meu segundo filho é adotado, e sabe disso. Veio para meus braços bem bebezinho e imediatamente apaixonei-me por aquela coisa fofa. Era um pouco mais peludo que os outros bebês, mas ainda assim, talvez justamente por isso, encantador! Um belo dia, quando eu estava brava e prestes a aplicar um castigo nele, afinal mães precisam impor limites para sua cria (e eu nem tinha conhecimento de que ele aprendera a falar), ele olhou fundo nos meus olhos e disse:

- Mulher, é importante que você saiba. Você tem uma missão especial, que é a de me cuidar e proteger. Sou uma criatura mitológica muito especial, a reencarnação do Velocino de Ouro!

Fiquei atônita. Aquele tom grave, hipnotizante na fala, acreditei imediatamente no que ele me dizia! Mesmo porque, há muito já o havia apelidado: Ovelha Mágica! Era como o chamava carinhosamente, minha Ovelha Mágica! Que honra, pensei, ser guardiã de uma criatura tão importante! Foi por causa do Velocino de Ouro que Medéia conheceu os Argonautas e se apaixonou por Jasão, paixão avassaladora. Ajudou-o no roubo da pele sagrada e, para garantir a fuga, matou e esquartejou o próprio irmão para que, espalhando pedaços de seu corpo pelo mar, pudesse retardar seu pai, rei da Cólquida, que os perseguiria. E olha que isto é só o início da tragédia, que termina com esta mesma Medéia assassinando seus dois filhos num ato de vingança contra a traição de Jasão. Meu Deus, por quantas aventuras teria esta criatura mítica passado até chegar na sua atual forma, de Riblas (nome com o qual o batizei, e isso é uma outra história)!?

Eu já era uma mãe carinhosa, mas acrescentei ao amor e carinho uma certa dose de respeito. Que, com o passar dos dias, percebi não ser correspondida. Riblas, minha Ovelha Mágica, meu Velocino de Ouro, estava cada vez mais rebelde, mal educado, folgado e bagunceiro. Em uma fria tarde de outono, chego em casa e o que encontro? Meio sapato na boca da Ovelha! Por que a outra metade ele já havia destroçado. Furiosa, arranquei aquele farrapo da boca dele e ergui mão poderosa. Quando estava prestes a acertá-lo, ele, todo encolhido, fitou-me com olhos brilhantes, quase lagrimejantes e, com voz triste, calma porém firme, disse-me:

- Mulher, é importante que você saiba. Você tem uma missão especial, que é a de me cuidar e proteger. Sou uma criatura mitológica muito especial, a reencarnação do Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo (tende piedade de nós)!

Diante de minha perplexidade, mão suspensa ao alto, Riblas ainda teve tempo de contar que era ele o carneirinho que aparece do nada no momento em que Abraão, participante ilustre da maior pegadinha do malandro da história, estava prestes a sacrificar seu único filho, Isaac, à pedido de Deus Pai Todo Poderoso. E que, séculos depois, estava ele tão ligado ao filho de Deus, aquele barbudo cabeludo mó boa pinta, que seus epítetos se confundiam: "Cordeiro de Deus". Sem pensar, diante de tamanho despautério, atingi a cara dele com o meio sapato. Ele saiu correndo, rabo entre as pernas. Eu gritava, urrava, sentia-me traída, enganada:

- Como pode você ser ao mesmo tempo Velocino de Ouro e o Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo (tende piedade de nós)?

E das entranhas da terra, também conhecida como "debaixo do sofá", uma voz abafada, séria e definitiva fez-se ouvir:

- Mulher. Sou um sujeito dividido. Dividido entre a mitologia grega e a mitologia cristã. Você, psicanalista, deveria compreender dessa coisa de sujeito dividido melhor do que ninguém! Mas você não se provou digna, digna de ser minha guardiã. Adeus! 

No dia seguinte, lá estava ele, Riblas, comendo ração e fazendo traquinagens pelo quintal. E nunca mais falou comigo.


sexta-feira, 13 de julho de 2018

Histeria

Dia mundial do Rock. E eu, que poderia de boca cheia e peito estufado argumentar que tal dia foi criado especialmente para mim, aqui, ouvindo Galantis.


Indicação, influência da amiga. A mesma que disse "Alok é o responsável pelo meu emagrecimento". Pô, esse tipo de frase impressiona uma mulher! Como é mesmo que dizia meu amigo Lacan? Cherchez la femme! 

Lembrei-me da mulher do açougueiro, não a adorável moça que acreditava no Aristófanes do Platão, mas a paciente que desafiou a teoria dos sonhos de Freud. E que, com tal desafio, ensinou muito à Freud sobre a histeria. Primeiro que a histérica, justamente para furar o saber do mestre, é esta que adora apontar seu dedo questionador, penetrante feito faca! Não foi isto que ela fez ao argumentar que esse papo de que o sonho é a realização de um desejo era conversa fiada pra boi dormir?

Mas Freud segue, escuta, instiga e investiga as associações dela. E assim descobre o quanto a histérica curte cultivar para si mesma um desejo insatisfeito, do tipo quero comer caviar todo dia, então peço ao meu marido que não me dê. Paradoxal, mas esse tipo de coisa mantém a histérica desejante.

E do desejo insatisfeito Freud nos conduz à identificação histérica. As associações desta paciente apontam para a amiga magrela que queria engordar e de quem a paciente tem ciúme. Assim, ela sonhara que gostaria de oferecer um jantar. No entanto, no sonho era domingo e as lojas estariam fechadas. Em sua casa não há quase nada para oferecer, então ela desiste do jantar. Quase nada, exceto um pequeno salmão defumado. Associação vai, associação vem, e quem é que adora salmão? A tal amiga. Assim o sonho realiza o desejo de não engordar a amiga para não correr o risco de que esta fique atraente aos olhos do marido, homem que, quando o assunto é mulher, prefere as de formas mais cheinhas. Nas palavras de Freud é como se o sonho dissesse: "Pois sim! Vou convidá-la para comer em minha casa só para que você possa engordar e atrair meu marido ainda mais? Pois prefiro nunca mais oferecer um jantar." Cherchez la femme!! 

Quanto à mim, resta-me a árdua tarefa de convencer meu corpo de que apenas ouvir Galantis ou Alok não será suficiente para emagrecer...



domingo, 13 de maio de 2018

This is America

Vem vê mamãe, esse clip tá quebrano a internet, o cara é gênio! E eu acho que você vai gostá.. disse-me ele. Apesar de frequentarmos diferentes internets, de fato a coisa toda chamou, e muito, a minha atenção. Falo de This is America, de Childish Gambino. E Childish Gambino é Donald Glover, um jovem negro, americano, ator, roteirista, humorista, músico e sei lá mais o que, o cara é genial. 

Sim, sim, sei que não precismos de um americano pra colocar em relevo questões sobre violência, ódio, racismo e etc. Temos isto tudo retratado por ótimos artistas e produções made in Brasil. Sim, sim, sei que o racismo no Brasil tem suas particularidades, a situação não é idêntica à estadunidense. Aliás, por aqui há quem seja cínico ou ingênuo o suficiente pra declarar que não há racismo em nosso país e que, apesar de uma Virgínia Bicudo e um Florestan Fernandes (e do que nós negros experienciamos cotidianamente), vivemos sim em uma democracia racial. Há círculos nos quais falar sobre racismo soa praticamente como ingratidão, afinal teve aquela branca tão bondosa que nos libertou da escravidão, não é mesmo? 

Bom, e sinto também uma voz que ecoa lá de longe, um tal de Adorno e um certo Horkheimer, que me censuram por me empolgar tanto com um produto da industria cultural que a critique, que isto não passa de mistificação das massas, etc, etc. Mas deixando estas vozes ranzinzas de lado, fato é que apesar da situação política e dos negros no Brasil não ser idêntica à dos Estados Unidos, há muitas semelhanças e certa continuidade. This is America fala de todas as Americas. Não apenas da questão negra, mas do ódio e também da obscura relação entre mídia, industria do entretenimento e verdade. E dessa relação nós, brasileiros, que sob um golpe de Estado seguimos a vida como se tudo estivesse no seu devido lugar, vivenciamos bem as consequências... 

Assista o videoclip uma vez. Passado o choque (que não deixa de fazer com que os quadris se movimentem, a música é boa), veja mais uma vez, olhe para aquilo que não está em primeiro plano. Viu?

    

E veja este vídeo interessantíssimo do canal Meteoro que esmiúça algo do que está acontecendo nesta obra de arte:



domingo, 6 de maio de 2018

Uma história verídica

Hoje aconteceu uma coisa curiosa: enquanto eu assistia Eu não sou um homem fácil, meu marido, ao invés de ficar quieto lavando louça, ia e vinha da cozinha, atormentando-me. Tudo que eu queria era sossego pra assistir um filme, no máximo que ele me trouxesse uma cerveja, é, seria bacana, mas ele ia e vinha reclamando: "você viu que esse pão que você comprou estragou e vou ter de jogar fora?", "custa colocar a louça dentro da pia?" "mas que bagunça você faz!" ,"esse iogurte vence hoje, vou ter de jogar fora" "esse pepino que você comprou estragou, vou ter de jogar fora", "mi mi mi", "mi mi mi"... Como eu o ignorava, ficou ainda mais nervoso, mais lamuriento e por fim resolveu me dar um belo castigo: estou proibida de ir ao mercado pois compro besteiras e coisas que deixo estragar. Vejam bem, meu castigo é: ao invés de passar parte da manhã de domingo num supermercado, ficar em casa fazendo o que eu bem entender. Inclusive assistir, sossegada, a um ótimo filme.


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

 A Formação do analista à partir do Fórum <> Escola[1]

No próximo mês, a "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola"[2] de Lacan completa 50 anos.  Por este motivo, a CLEAG (Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia, uma das instâncias da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano) propôs para o Espaço Escola do Encontro Nacional deste ano que os Fóruns conversassem sobre este texto, para que um representante pudesse levar algo dessas discussões a partir dos eixos: Escola <> Passe; Escola <> Cartel; Escola <> Fórum. Este foi o start para que as atuais coordenadora e delegada do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso DO SUL se propusessem a fazer hoje esta fala, pensando a "Proposição" a partir do eixo Escola <> Fórum.   

Para começar preciso passar minimamente por nossa sopa de letrinhas[3]. São muitas instâncias, dispositivos e siglas que compõe a estrutura que denominamos "Campo Lacaniano". Mas acreditem, este mosaico ou esta sopa de letras, pura neblina num primeiro contato, vai se dissipando na medida em que se os experimenta. Digo isto justamente a partir de minha experiência enquanto membro de Fórum e membro de Escola.  

Os Fóruns do Campo Lacaniano... a criação de uma instância internacional que congrega Fóruns de vários países, a Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano, ou IF-EPFCL, veio em resposta, saída, ou solução à crise e ruptura de alguns (vários) com a Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Tal crise ficou conhecida como “A cisão de 98”. Então temos a Internacional dos Fóruns e, no Brasil, uma Associação Nacional, cujo nome fantasia (e que provoca mesmo muitas fantasias) é EPFCL-Brasil (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano). A Associação é o Fórum local e os Fóruns regionais, como o nosso no caso, ou São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Aracajú, Joinville, Curitiba, etc, etc..., ligam-se à Associação, que é quem dá suporte financeiro e jurídico à Escola. 

Ser membro de Fórum não é o mesmo que ser membro de Escola e, bem, não vou tratar aqui das exceções (É claro que elas existem! Que bom!), mas posso dizer que a entrada em um Fórum é um primeiro passo em direção à Escola. Os Fóruns congregam todos aqueles, incluindo psicanalistas, mas não apenas, que, de alguma forma, estão concernidos pelo discurso psicanalítico e que estão dispostos a, a seu modo, trabalhar para sustentar tal discurso na civilização.  Dito com Vera Iaconelli, lugar daqueles que tomam para si "as questões sobre a formação, a transmissão e o fim da análise", questões estas que impregnam "todo o campo do Fórum"[4]

Falar do laço entre Fórum e Escola implica falar da formação do psicanalista. Parto de uma questão: o que é que se ganha sendo membro de um Fórum do Campo Lacaniano? Qual a vantagem?  Imersos na lógica capitalista que estamos, lógica tal que reduz os objetos de desejo a mercadorias a serem consumidas e descartadas, nesta lógica a pergunta não está fora de contexto. Mas a resposta talvez sim: Trabalho. Lacan, no "Ato de Fundação"[5], em 1964 (e gosto de ler a "Proposição" como texto em continuidade com o "Ato"), define sua Escola como um organismo de trabalho. O que se ganha sendo membro de Fórum e, de modo geral, posteriormente, mas não necessariamente, membro de Escola, é trabalho... Trabalho causado pela psicanálise, trabalho no sentido de restaurar a relha cortante da verdade psicanalítica, instituída por Freud; trabalho no sentido de garantir que a práxis, vejam bem, PRÁXIS, original que Freud inaugurou sob o nome de psicanálise cumpra "o dever que lhe compete em nosso mundo", cabendo aí a crítica assídua que denuncie os desvios e concessões que poderiam amortecer o progresso e degradar o emprego da psicanálise (LACAN, 2003, p. 235).

, tá, tá, sopa de letrinhas, trabalho, práxis... Mas e a formação? Bem, desde sempre, quero dizer, desde Freud, a formação do psicanalista se dá a partir do já famoso tripé: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão.  Em relação à Escola de Lacan, a formação foge ao padrão, ao padrão universitário, dos cursos, do diploma, da carteirinha, de um tempo previamente estipulado. A garantia de analista não passa por aí. Tão pouco passa por um mestre que autorizaria o sujeito, que lhe diria "vá, você está pronto, la garantia soy jo!". Não. E isto pode causar confusão, decepção. "Como assim, eu entro nesta biroska, ganho com isso trabalho e nenhum curso intensivo que garanta que em tantas lições serei psicanalista? E a análise, me diga aí, quanto tempo tenho de fazer, 5, 7, 20 anos?" Ah, o que posso dizer? Como medir o tempo de assunção do sujeito do inconsciente, que é lógico e não cronológico? Por que não permitir que cada um trilhe o caminho aberto por Freud e tire disso as consequências que convém ao fazer psicanalítico?  

Com a ajuda de Dominique Fingermann sustento a ideia de que a formação do psicanalista e o futuro da psicanálise depende de uma intranquilidade, um desconforto, um desassossego. É esta intranquilidade que nos impulsiona, aos analistas, a criar dispositivos que não reduzam a psicanálise à “mera técnica desfalcada de sua orientação ética”[6]. Cito-a:

"... não se pode responder à questão da formação do analista com preceitos, cartilhas e programas, estabelecidos como sabemos com as melhores das intenções [...] as propostas de formação de analistas coerentes com o ensino de Lacan não se dedicam a promover um 'ensino' da psicanálise nem a responder às demandas de formação de psicanalista: não se trata de formar ou formatar analistas, mas de propor um campo de experiência e de interlocução no qual estará à prova o desejo de analista, ou seja, a deformação que as análises pessoais teriam eventualmente produzido [...] é na escola do inconsciente que o analista se transforma, não na escola dos professores."


"Ah tah, trilhar o caminho aberto por Freud, fazer análise, supervisão, estudar a teoria, isso tudo eu posso fazer muito bem prescindindo de Fórum, Escola, e toda essa complicação. Se ‘é na escola do inconsciente que o analista se transforma e não na escola dos professores’, por que a Escola?" Gente, pergunta difícil! Proponho uma resposta furada, não-toda. E para isto, recorro à aniversariante do mês que vem, a “Proposição”. Ali Lacan estabelece um princípio: “o psicanalista só se autoriza por si mesmo” (e esta afirmação é suscetível a todo tipo de equívoco. Autorizar-se por si mesmo não tem a ver com um Eu que se auto-afirma “sou psicanalista, u-hu”. Na verdade, será psicanalista aquele que, prescindindo da autorização do Outro, autorizou-se ao ato analítico, e isto é apreendido à posteriori, uma vez que o ato não é calculado pelo Eu). Mas tá, “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”, mas, sigo com Lacan, “isto não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação. E o analista pode querer essa garantia. ” No seminário 21, Lacan retoma isto de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo e acrescenta: ... "e por alguns outros". Quer dizer, por seus pares.

Quanto à Escola, costumamos nos referir a ela como refúgio do mal-estar na civilização. Quinet a situa como a “estranha” na civilização. Gosto também de uma definição que ouvi de Silvana Pessoa[7], da Escola como um lugar onde as pequenas Antígonas que são os analistas podem se encontrar. E acho excelente quando Dominique Fingermann se refere à ela como campo de experiência e de interlocução. Advertida quanto à solidão do ato analítico, sustento que a escolha por fazer parte de uma comunidade de trabalho pode amenizar tal solidão.

Isto não significa que tudo seja lindo, perfeito e harmônico dentro de uma comunidade de analistas. Não.  "... a Escola não é apenas local de bem-estar, já que acolhe o mal-estar da civilização - seu rebotalho, o objeto a – para que haja chance de o discurso do analista aí ocupar um lugar na circulação dos discursos."[8] Não é do paraíso na terra que se trata. As crises e rupturas estão inscritas na história do movimento psicanalítico. Nos Fóruns e na Escola, o laço deve se dar em torno da causa analítica, movimentado pelas transferências de trabalho. O que, é claro, não excetua os laços fraternos, laços de amizade, as afinidades, mesmo porque isto é inevitável. Não estamos livres das idealizações e tão pouco do narcisismo das pequenas diferenças, que segrega em nome da coesão do grupo. Ou seja: as comunidades psicanalíticas não estão imunes aos efeitos de grupo. O que impediria, por exemplo, que analisandos que tenham o mesmo analista liguem-se entre si, identificando-se, portanto, no nível do eu ideal uns com os outros, em torno daquele colocado como ideal de eu, o analista (com toda ambivalência que pode estar presente aí, é claro) num movimento de apagamento e isolamento daqueles que não fazem parte da patota? Isto é só um exemplo, uma forma de colocar em imagem a questão, vejam como o combate à estrutura da psicologia das massas é uma constante. Afinal, ainda que alguém não se coloque na posição de mestre, chefe, líder, UM, o que seria pura impostura, este alguém pode ser alçado à esta posição por conta das transferências que suscita, e deve responder à altura. Não foi a troco de nada que Lacan propôs como base de trabalho em sua Escola o cartel.

Uma comunidade em que, como escreve Maria Anita Carneiro Ribeiro a respeito da cisão de 1998, “circulem os quatro discursos e, sobretudo, da qual o discurso analítico não esteja excluído”[9] é algo que nos desafia a todo momento. E o que posso dizer por enquanto, considerando meu percurso e experiência, é que nosso Fórum, a Associação e a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano tem respondido este desafio à altura.  






[1] Fala apresentada no Espaço Escola do FCL-MS em 16-09-2017.
[2] LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 248-264.
[3] Coisa que Andrea Rodrigues fez muito bem em Stylete Lacaniano 1.
[4] IACONELLI, V. AEscola. In:  Stylus: Revista de Psicanálise, n.34. Rio de Janeiro:  AFCL/EPFCL – Brasil, 2017, PP. 139 144. 
[5] LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235-247.
[6] FINGERMANN, D. A (de)formação do psicanalista: as condições do ato psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2016, p. 32.
[7]  Ética e desejo de analista – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino, https://lacaneando.com.br/audio/.
[8] QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 120.
[9] RIBEIRO, M.A.C. A cisão de 1998. In: Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n 137, pp. 83-89.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A Vênus despedaçada

Em Dourados, no Ágora Instituto Lacaniano e sob a condução de Claudia Wunsch, seguimos estudando A psicopatologia da vida cotidiana de Freud, texto de 1901. De modo geral os psicanalistas sabem que se deve retornar over and over à Freud: há sempre algum canto, que se apresenta como novo, a ser iluminado. No meu caso, este texto tem um sabor especial por me lembrar o quanto o inconsciente aparece nas pequenas coisas do cotidiano, está na superfície, estruturado como uma linguagem, basta que estejamos atentos.

No capítulo sobre os “Equívocos na ação”, Freud gentilmente nos conta um episódio que se deu num período em que uma de suas filhas encontrava-se doente. Em seu íntimo, Freud já a havia desenganado. Porém, na manhã em que soube “que tinha havido uma grande melhora” e que ela provavelmente sobreviveria, ao passar por um quarto de roupão e chinelos de palha, cede à um impulso repentino e atira um dos chinelos na parede, de modo a fazer cair e despedaçar-se no chão uma estátua de mármore da deusa Vênus. Sua interpretação sobre o ocorrido: “Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de gratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrificial’, como se tivesse feito uma promessa de sacrificiar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela recuperasse a saúde!”

A primeira ideia que me ocorreu foi um vago pensamento sobre o quanto a religiosidade nos antecede e compõe as coordenadas simbólicas nas quais nos inscrevemos. A noção de um ser superior que nos protege e nos pune, ainda que o chamemos Destino, é mais forte no inconsciente que qualquer consciência laica. O Freud ateu, de “Totem e Tabu” e “O futuro de uma ilusão” não se furtou a realizar um ritual de sacrifício em nome da melhora de sua filha.

A segunda ideia, uma lembrança: anos atrás o rapaz que eu namorava presenteou minha mãe com um relógio de parede. Ele queria conquistar sua afeição para que nosso namoro pudesse transcorrer sem maiores acidentes. Mas o relógio... ah, era horroroso! Fiquei envergonhada diante de tamanho mau gosto, confesso. A opinião de minha mãe não era diferente, mas, por educação, o relógio foi pendurado num lugar de destaque da casa. Pra piorar a situação, o bendito, a cada hora redonda, tocava uma música, pra nos lembrar de sua existência medonha no recinto. Num belo dia, num acesso de fúria adolescente do tipo “rebelde sem causa”, diante de uma negativa de meus pais a um pedido bobo, inusitadamente peguei a primeira coisa que vi na frente, uma chave no caso, e atirei com força para o alto. Qual não foi minha surpresa: acertei em cheio o relógio, que caiu do alto e se espatifou. A sensação foi de alívio. Minha mãe abriu um largo sorriso antes de me repreender... 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Labirinto[1].
Francina Sousa[2]

Eu é um outro – Rimbaud.  
Entrei em um labirinto, pouco iluminado. Na bagagem, alguma experiência. Para não me perder, venho produzindo um mapa tecido pela clínica e por enunciados psicanalíticos, que conduzem a textos que conduzem a outros enunciados... Tal mapa tem-me servido como fio condutor, pois, no final das contas, no percurso psicanalítico não há fio de Ariadne. No portal de entrada lia-se: “Separação, luto e perdas”. Foi por onde entrei, vestida de Mais-um, acompanhada por três pessoas. Mas logo cada uma assumiu seu caminho. Periodicamente é possível encontrar-me com elas em algum ponto deste insólito lugar, momentos que amenizam a solidão do caminhar. Ter entrado neste labirinto por este portal específico, “Separação, luto e perdas”, representa que decidimos estar enlaçadas por no máximo dois anos a um tema em comum, é o tema de nosso cartel.
Dia desses nos encontramos em uma encruzilhada e pude ler na placa que indicava o local: “Introdução ao Narcisismo, Freud”. Fomos até ali para entender melhor a constituição do Eu, este que é um outro. Esta encruzilhada me marcou de tal maneira que, quando menos espero, lá estou novamente! Nos últimos encontros partimos de um trecho escorregadio, “A negativa, Freud”, parecia um bom atalho. Mas ele nos conduziu a uma ladeira, “Comentário falado sobre a ‘Verneinung’ de Freud, Hyppolite” e antes que chegássemos ao topo, rolamos ladeira abaixo! Mais uma vez acampamos na “A negativa, Freud” e no dia seguinte cada uma continuou seu caminho.  
Carrego comigo uma bússola, também conhecida no meio psicanalítico como “tema individual de cartel”, conhece? Não sei se você já sabe, mas no cartel é assim: de três a cindo pessoas, sendo quatro a justa medida, se juntam em torno de um tema geral. Mas cada um investiga um tema de interesse próprio. O meu? Está programado em minha bússola: “separar-se dos ideais...”. Minha indagação diz respeito ao próprio processo analítico, aos meandros que permitem ao sujeito, este eterno dividido, reconhecer-se em seus ideais: Eu ideal, Ideal de Eu.  E separar-se ou, no mínimo, prescindir do lugar a que tal dupla o confina.
Em determinado momento minha bússola apontou para a gruta “Agressividade em psicanálise, Lacan”. O labirinto assume formas inesperadas, mas apesar da escuridão desta gruta, saí de lá portando um feixe de luz:
“Longe de ataca-lo [o Eu] de frente, a maiêutica analítica adota um rodeio que equivale, em suma, a induzir no sujeito uma paranoia dirigida.” (LACAN, 1948/1998, p.112)

Este trecho diz respeito à dimensão do imaginário e seu manejo na clínica. Um princípio básico: a abstenção do analista em responder em qualquer plano de conselho ou projeto pressupõe uma estratégia de não ataque frontal ao Eu do sujeito que busca uma análise. Delineia o lugar de engano e o parentesco do Eu com a loucura. No plano imaginário da transferência, o sujeito pode localizar no analista as sucessivas identificações que o formam e armar-se em oposição a elas. Pois se o que sou Eu está no outro (pequeno outro) então como posso Eu existir? A ameaça de aniquilação torna-se iminente! Estaria aí o analista situado na posição de eu ideal? Ainda na gruta “Agressividade...”, Lacan contou-me de uma paciente histérica, que há meses resistia a qualquer tentativa de sugestão terapêutica. Lacan viu a personagem que representava para esta paciente identificada aos traços desagradáveis do homem pelo qual estava apaixonada, paixão esta colorida pelo delírio (e como uma histérica apaixonada delira!); quanto à neurose obsessiva, Lacan faz aí alusão às fortificações ao estilo de Vauban. Bom, imagine um castelo cercado por um fosso, cheio de jacarés, cuja entrada possível se dá por uma ponte levadiça...  É possível que você tenha visto algo semelhante em algum filme ou desenho animado. Pois bem, o Eu do neurótico obsessivo é propenso a tomar a forma de tais fortificações. Haja estratégias e rodeios para alcançar o sujeito dividido que ali se esconde! A orientação de Lacan neste momento, na direção do tratamento do neurótico, é:

Evitar, através de nossa técnica, [...] que a intenção agressiva no paciente encontre o apoio de uma ideia atual de nossa pessoa, suficientemente elaborada para que possa organizar-se nas reações de oposição, denegação, ostentação e mentira que nossa experiência nos demonstra serem os modos característicos da instância do Eu no diálogo. (LACAN, 1948/1998, p.111)

Portanto a agressividade está no cerne do Eu. Há uma relação entre a agressividade na experiência analítica e algo estrutural que Lacan nomeia como imagos do corpo despedaçado. Uma das teses de Lacan é de que a agressividade seria uma tendência correlativa à identificação que forma o narcisismo, que “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo” (p. 112).
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Hieronymus Bosch – Detalhe do quadro “Jardim das delícias terrenas”, 1500-1505.

“Que negócio é esse de imagem de desmembramento corporal?” você me pergunta. Bem, não desista, tente me acompanhar. É que ao sair desta gruta caí na viela “Como Marx inventou o sintoma, Zizek” e encontrei algo bem interessante escrito por Marx:

“De certa maneira, dá-se com o homem o mesmo que com as mercadorias. Uma vez que ele não vem ao mundo nem com um espelho na mão, nem como um filósofo fichtiano para quem ‘eu sou eu’ seja suficiente, o homem se vê e se reconhece, inicialmente, nos outros homens. Pedro só estabelece sua própria identidade como homem depois de se comparar com Paulo como sendo da mesma espécie. E com isso, Paulo, simplesmente ao se postar em sua personalidade paulina, transforma-se para Pedro no exemplar típico do gênero homo.” (ZIZEK, 1996, p.308-309) [grifo nosso]

Sim, o homem não vem com um espelho na mão... Vou te contar, aquilo me soou muito familiar, “coisa de Lacan”. “Deve ser por conta da influência de Hegel no pensamento de ambos, Marx e Lacan”, pensei, e prontamente Zizek completou:

“essa breve nota antecipa, de certa maneira, a teoria lacaniana do estádio do espelho: somente ao se refletir num outro ser humano – isto é, na medida em que esse outro ser humano lhe oferece uma imagem de sua unidade – é que o eu [moi] pode chegar à sua auto-identitidade; a identidade e a alienação, por conseguinte, são estritamente correlatas.” (p.309)

Pois vamos lá: tente, por um instante, olhar para seu próprio corpo. Percebe o quanto é impossível ter uma apreensão total de si mesmo sem um elemento mediador? Ok, você vê braços, pernas, a barriga... e a nuca? O rosto? Este é, ao nosso olhar, permanentemente inacessível, a não ser como imagem refletida. Narciso que o diga! Em resumo: vemo-nos aos pedaços. Venha comigo, vamos voltar àquela encruzilhada:

“uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas os instintos autoeróticos são primordiais; então deve haver algo que se acrescenta ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo.” (Freud, 1914/2010, p. 18-19)

Este momento, que marca um antes e um depois, sendo o Eu, ou a noção de uma totalidade corporal, o que viria depois, é designado por Freud como narcisismo primário. Esta “nova ação psíquica” não é uma pedra, mas está no meio do caminho entre o autoerostismo e o amor de objeto e articula-se ao outro, ou melhor, à imagem do outro. A beleza (e o inferno!) disso tudo é que em princípio é necessário conhecer o outro para nele reconhecer-se como Eu. Estádio do espelho com Lacan, acontecimento que pode produzir-se a partir dos seis meses de idade e que pode ser compreendido como uma identificação, “no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97).
Segundo Lacan, o infans tem uma imagem fragmentada do corpo, vê-se aos pedaços e isto tem consequências. Ainda vivenciando estas fantasias de um corpo despedaçado, fragmentado, encontra sua unidade a partir da imagem do outro. A análise demonstra esta hipótese quando se reflete “no fundo das fixações mais arcaicas” (LACAN, 1948/1998, p. 108), hipótese que se mostra “regularmente nos sonhos, quando o movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo” (LACAN, 1949/1998, p.100). É o que Bosch dá a ver com sua arte. Há neste drama (que necessita do olhar do Outro para efetivar-se), uma antecipação do psíquico sobre o fisiológico. Voltando para a encruzilhada, com Freud é possível dizer que o Eu é o primeiro objeto da pulsão, tornando-se o reservatório da libido:
Formamos assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam (1914/2010, p.17)
 Funda-se primeiro o objeto e depois o sujeito? Ou o falasser funda-se a partir de uma divisão que o coloca a um só tempo como sujeito e objeto da pulsão libidinal? O que você me diz?
Estou te deixando perdido? Sim, sim, são os efeitos de se estar em um labirinto, não se preocupe. Não te contei a princípio, mas trouxe na bagagem uma lanterna que sempre me ajuda quando o assunto é psicanálise: Dostoievski. Veja, em “Memórias do Subsolo” o narrador-personagem, que representa muito bem um neurótico obsessivo, derrama todo seu narcisismo diante do leitor, verdadeira lição sobre o Eu e seus ideais. Através desta obra é possível perceber, nas batalhas mentais travadas pelo narrador com seus semelhantes, o fundamento paranoico do Eu, a bipolaridade que Eu e Eu Ideal encenam e o assujeitamento em relação ao Ideal de Eu (essa espécie de régua formada pelos significantes recalcados que constituíram a imagem primordial do sujeito, e pela qual ele se mede). “O Ideal do eu é o ponto de onde eu me vejo como amável” (QUINET, 2012, p.25). “Mas como é que pode”, você me pergunta, “o sujeito ser assim, tão marcado pelo significante antes mesmo de ter domínio sobre a linguagem?” Bem, é uma boa pergunta! Que me remete à seguinte ideia: o sentido (o significado a significar o significante) vem depois, à posteriori. E, independentes do sentido, os significantes primordiais insistem...
E eu te pergunto: aquilo que amamos/odiamos/invejamos/desprezamos em nosso semelhante expressa coordenadas infligidas por nosso narcisismo? Narcisismo este que nos impõe um Ideal de Eu impossível de se realizar? Eu diria que... que pena! O cartel responsável por esta edição de Stylete Lacaniano está aqui, no meu ouvido, avisando: o espaço acabou. Tenho de deixar-te agora. Quem sabe nos encontramos em outra encruzilhada? Afinal, ainda tenho um bom caminho a percorrer até a saída deste labirinto.

FREUD, S. (1914) “Introdução ao Narcismo”. In: Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DOISTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo. Tradução de Bóris Schnaiderman. São Paulo: Ed.34, 2000. 
LACAN, J. (1948) “A agressividade em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1949) “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ZIZEK, S. “Como Marx inventou o sintoma”. In: Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.



[1] Artigo publicado em Stylete Lacaniano nº6 – www.stylete.com.br
[2] Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano IF-EPFCL, EPFCL-Brasil/Fórum MS, membro do Ágora Instituto Lacaniano - MS. Psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.