sexta-feira, 21 de setembro de 2012

The Big Shave - Martin Scorsese



Deparei-me com o primeiro curta de Martin Scorsese, The Big Shave (1967)  e ele causou-me forte impressão. Bom, melhor seria dizer que me causou um tremendo estranhamento, de embrulhar o estômago! Mas apesar deste estranhamento todo, enquanto esfregava aflitivamente uma mão na outra não consegui desgrudar os olhos do que associei à uma tela de devaneios onde pintara-se o retorno do recalcado, a ansiedade de castração, a compulsão à repetição... Um de meus barbudos preferidos ja explicou que uma criação artística nos remete aos elementos mais profundos da alma humana, uma vez que a arte está calcada no registro das pulsões. Lembrei-me dele dizendo que para além do belo  e da harmonia pode haver na arte uma dimensão de estranhamento, uma inquietação aparentemente estrangeira que nos remete à algo familiar, que deveria, como diz o Schelling, ter permanecido secreto e oculto mas que veio à luz! Retorno do recalcado, essa coisa que nos causa uma agonia danada! A apreensão e o desassossego que acompanharam-me durante a repetição crescente contida na cena fez-me pensar na prisão, desenhada por um Outro, em que o neurótico se confina. Pensei em sua repetida queda nas mesmas armadilhas, sua tendência a confundir o mais do mesmo em sua vida com novidade, a sangrar cotidianemente a mesma dor, a mesma amargura, sem se dar conta de que quem segura a lâmina é ele mesmo...


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Meu encontro com Freud


Um homem aproximou-se e estendeu-me a mão. Apresentou-se como Mário de Andrade e aquele parecia um nome importante. Conversamos por algum tempo, na verdade ele falava e eu ouvia, e achei tudo o que ele dizia fascinante. Contou-me sobre uma professora quarentona de francês e suas fantasias relacionadas à certa catedral. Deu-me pistas sobre algo que anos mais tarde eu conheceria como histeria. Mas a história que mais me impressionou foi a de um jantar protagonizado por um delicioso peru. Protagonizado? Não, não sei se posso me expressar assim.  Mas em um primeiro momento o peru pareceu-me o elemento central daquela história. Mario alertou-me: “tem certeza de que é do peru que se trata?” Tentou então explicar-me sobre o pai, que na história estava morto, logo, eu não havia lhe dado muita importância. Era simbólico demais pra a minha cabeça de dezesseis anos, mas dizem os psicanalistas que o pai, no plano simbólico, é o pai morto, não? Mario percebeu minha inquietação e disse: “Se você esta achando esta conversa interessante, deveria conhecer outro homem”, e o apresentou como Freud. Nome familiar, afinal, quem na vida não ouvira a máxima “Freud explica”? Este tal de Freud, com um charuto entre os dedos e uma barba bem feita, começou a falar animadamente sobre certas instâncias psíquicas, id, ego e superego e o mais chocante, sobre sexualidade infantil. “O que? Eu já desejei ter um filho de meu pai?” arregalei os olhos! A única coisa que consegui de fato entender é que o ser humano não é onde pensa ser, coisa que Lacan explicou-me bem anos depois. Deixei toda aquela complicação de lado.
Tempos depois um homem feio, de barba comprida e cabelos ralos, com um nome estranhíssimo, achegou-se a mim com um papo sobre um assassinato. O assassino tinha um nome ainda mais estranho que o seu: Raskólnikov. O jovem assassino, que se considerava um homem extraordinário, sucumbe à culpa e não vê saída senão confessar seu crime. Ou teria cometido o crime movido por ela? Fiquei curiosa com essa coisa de culpa. De onde ela viria? O homem barbudo, Dostoiévski eu acho, disse-me que lá no fundo todos nós já desejamos cometer um assassinato. Fiquei perplexa. Ele tentou explicar-me a questão com mais uma de suas histórias: a de um pai que é assassinado por um de seus filhos. Que horror! Mas a história era tão atraente que em vários momentos cheguei a pensar que aquele Karamazov, pai todo gozador, merecia mesmo o destino que lhe fora traçado. Percebendo minha empolgação, Dostoiévski contou-me que conhecia um homem que parecia saber muito sobre a alma humana (não mais que ele é certo!). “Ele até escreveu um artigo sobre minha pessoa!” disse-me. Mais uma vez quem apareceu foi aquele senhor barbudo da sexualidade infantil. Bem, tive de depor minhas armas...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Anti Cristo

Parte II - Freud está morto.

Ok, sei que precisamos falar sobre Kevin, mas não é o momento, não o meu... Depois de tanto tempo,  continuo (ainda) a ruminar esse Trier... No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz pra sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo. Lembrei-me de algo que li: “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos sonhos e não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de noções em psicanálise. Aliás, como escreveu uma amiga, parece que praticamente toda psicanálise está nesta obra... Acho fantástico que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso? Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso?  Freud pode estar morto, mas suas idéias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso.