terça-feira, 31 de março de 2020

Pandemia I - Ela

O que mais lhe chama a atenção é que, passados quase 15 dias de isolamento, suas noites tem sido ótimas, quer dizer, tem dormido muito bem. O medo de perder quem mais ama, o medo do depois, a realidade tem sido paralisante. No entanto, dorme feito bebê. Nada daquele acordar no meio da noite com o coração disparado, tão típico de seus dias de angustia. Sono pesado, sono gostoso. Sonha. Sonhos que se sabem sonhados mas dos quais se esquece. Leu dia desses em Freud que esses são os sonhos que melhor cumprem sua função, que é a de manter o sono [1]. 
Sua primeira reação diante do vírus foi querer sumir do mundo. Tem um pouco de preguiça, talvez seja inveja, daqueles que desde o primeiro dia de quarentena tinham algo para dizer ou fazer dela. Ela, ela não sabe de nada. Entende o que está acontecendo, mas não compreende. Porque, lá no seu fundo mais apavorado, acredita que isto tudo só será compreendido depois. O que não impede as pessoas da tentativa de simbolizar o que é e o que virá disso tudo, é, deve ser inveja o que ela sente. Inveja e admiração. Porque ela não consegue. O que consegue é visualizar a última cena de Melancolia e desejar que acontecesse. É um desejo mentiroso, mas vejam que interessante: ela não quer morrer, não sozinha. Antes, deseja que se for para Um dos seus morrer, que todos pereçam, tamanho é o medo do que virá depois. 
Mas ela dorme feito bebê (aqueles raros, que dormem a noite toda). Goza, na dependência de um homem. 

[1] - FREUD, S. Alguns complementos à interpretação dos sonhos. Obras completas, vol.16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 320: "Segue-se que para o Eu que dorme é indiferente, no conjunto, o que durante a noite é sonhado, desde que o sonho realize sua incumbência, e que os sonho de que nada sabemos dizer após despertar são aqueles que melhor cumpriram a sua função." 
31-03-2020.