quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Todos caminhos levam à Roma...

Sabe quando todos os caminhos insistem em te levar para o mesmo lugar? Pois é, ultimamente quando menos espero, eis que Nietzsche cai no meu colo. Ontem à noite não foi diferente, e quando dei por mim, estava enlouquecida discorrendo e escorrendo sobre a forma nietzschiana de escrito, o tal do aforismo. Claro que não entendo nada de Nietzsche, mas na minha cabeça esse caboclo foi aquele responsável por eu ter finalmente abandonado a posição "Ivan Karamazov" ou, dito em outras palavras, a posição de alguém que se anuncia ateu mas no fundo permanece em duvida quanto à existência divina. Foi na adolescência, depois de uma martelada nietzschiana (que na minha lembrança foi mais ou menos assim: "Como?!! Seria o homem uma criação de Deus? Ou seria deus apenas uma criação do homem?") que pude tranquilizar-me quanto ao meu ateísmo, este deixou de ser uma questão. Foi disso que lembrei enquanto escorria sabichonices de botequim, enquanto animadamente defendia a ideia de que alguns escritos podem condensar um mundo e que, justamente por isso, devem ser lidos com tempo, calma... Devem, enfim, ser ruminados, afinal, as vezes um parágrafo pode "valer" mais que 20 páginas! E não é que depois, bisbilhotando o aforismo 8 da Genealogia da Moral, li algo lindo que o bigodudo escreve sobre seus aforismos e a arte de sua leitura? "A dissertação é precedida por um aforismo, do qual ela constitui o comentário. É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um 'homem moderno': o ruminar..." Considerando a pressa quantitativa de nosso tempo, esse trecho tem muito a dizer, não?
...
Sabe quando todos os caminhos insistem em te levar para o mesmo lugar? Bom, no teu caso, improvável leitor, eu não me iludiria à ponto de atribuir isto à mera coincidência. O inconsciente é mais ardiloso do que supomos... digo isso porque depois do tal aforismo 8, lembrei-me (finalmente) de ter lido há poucos dias sobre a forte impressão que a obra de Nietzsche causou no jovem Lacan e que, diz a Roudinesco, foi após ler a obra dele que o francês abandonou de vez a religião e a fé, como eu, numa provável e fabulosa reconstrução histérica, julgo ter feito anos atrás por conta de um "simples" aforismo...
31/08/2012.

terça-feira, 4 de junho de 2013

My God is the Sun

Depois de uma lição sobre desejo, 
deslizei os cabelos protegidos pelo para-brisa, 
mas não completamente impunes, 
o vento lhes fazendo justiça, 
em uma música deliciosa...
O problema é que não entendo absolutamente nada de música. Teoria musical? Já vi por aí, mas permaneço arisca. Talvez eu não consiga ver razão na música, limito-me a senti-la (e o refúgio do amante apaixonado pela música, que de música nada entende, é convencer de que a sente como ninguém!). Mas olhem só, Lacan deu uma desembaraçada em mim dia desses: ao retomar o Banquete, e nele o discurso de Eríximaco, o francês relaciona a noção de harmonia no discurso daquele à noção de acorde na música. Mas em um primeiro momento tudo que eu conseguia ler era A-C-O-R-D-E!!!!  Qual o sentido de tal equívoco? Sei , e só lá, mas sobre música penso que talvez, pra mim, ela seja isso, isso que acorda os corpos ao entrar em acordo com eles, e este acordo é subjetivo.  Pois é. No meu caso, apesar de nada saber sobre baixos, riffs e solos, quando a voz dele entra naquela música não me importa o que ele canta, e sim como ele canta, como derrete sua voz na palavra tornando-a quase líquida, dando à ela uma sinuosidade pra lá de erótica! A guitarra que atrai o corpo em suaves solavancos enquanto o baixo o lança de um lado pro outro... A bateria que faz o corpo fanático movimentar-se em  sim sim sim sim!!! ...Faltam palavras pra dizer daquilo que é pele, daquilo que é visceral, é difícil dar significado aos significantes que o corpo atua... 

segunda-feira, 11 de março de 2013

Forma... estilo...


Estava eu ruminando um texto de Freud* quando coloquei-me a acentuar mentalmente o fato de que a regra imposta ao analista de não querer notar nada em especial, e oferecer a tudo o que se ouve a mesma "atenção flutuante" é precedida, no tal texto, por um comentário que aponta, entendo eu, pra uma certa liberdade concedida ao analista na execução desta regra. Lacan, no Seminário 1, diz que a formalização [por Freud] das regras técnicas é assim tratada com uma liberdade que, por si só, é um ensinamento que poderia bastar, e isto tudo remeteu-me à uma famosa passagem em que Freud compara a análise a uma partida de xadrez, na qual apenas as aberturas e os finais são passíveis de uma sistematização, as jogadas não. Significa que a condução de uma análise não pode ser rigidamente  pré-determinada... Deixando-me levar por um certo deslizamento, veio-me à cabeça um significante recorrente no campo lacaniano: estilo do analista. É que a formação em psicanálise não se dá em série, como numa linha de produção, e não se limita ao molde universitário, logo os “produtos” de tal formação terão cada um sua singularidade (há de se considerar e muito o fato de que, seguindo Lacan, um analista não se coloca como modelo egóico a ser apreendido pelo analisando, fator importante para uma formação não serializada, não é mesmo?). Freud, ao estabelecer a atenção flutuante como regra, não o faz de forma a fixar as etapas que devem ser seguidas para que tal objetivo seja atingido (assim como não engessa as etapas a serem seguidas por um analista em sua clínica), apenas orienta que o analista abandone-se à memória inconsciente, afinal o Eu nessas horas só atrapalha! Lê-se em Freud a segurança de alguém que propõe-se a não selecionar o material que lhe é apresentado, a segurança de alguém que escuta de maneira flutuante as associações livres de seus analisandos, e sabemos, isto não é tão simples quanto pode parecer: assim como, do lado do analisando, a crítica consciente e a resistência impõe-se o tempo todo contra a associação livre, do lado do analista, há o perigo do Eu ardilosamente querer se intrometer, e sabemos com Lacan que o analista, ao ocupar este lugar, paga com interpretações e com sua pessoa, uma vez que pela transferência ele é literalmente despossuído dela! Daí, mais uma vez (sei sei, sou repetitiva) a importância da análise pessoal do analista, afinal como escutar o inconsciente de alguém quando não se sabe nada sobre seu próprio? Se o Eu do analista não está em questão (em outro lugar), como poderá ele desmontar as certezas imaginárias do analisando e fazê-lo avançar?

*Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise. 

domingo, 10 de março de 2013

(Mais um) Pequeno comentário acerca da Abertura do Seminário 1 de Lacan (ou da tentativa de responder à pergunta: “Se Lacan era tão freudiano, porque não ler apenas Freud?”)

Lacan inicia seu Seminário 1 com um dito sobre a técnica zen. Considerando que tal Seminário aborda os chamados “escritos técnicos de Freud”, penso ser importante um olhar atento a esta passagem. Que teria a psicanálise a ver com a técnica zen? Aqui, neste trecho tão curto, Lacan já nos indica o que veio anunciar. Sobre o mestre budista, a lição é que este “não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la”. Em outras palavras, o mestre conduz seus discípulos pelo percurso que os leva à resposta. Mas o estilo de Lacan, que poderia talvez condensar-se sob o significante enigmático[1], nos convida ao jogo da decifração. Joguemo-lo. Lacan se alinha a tal perspectiva técnica na medida em que sua transmissão situa o leitor-ouvinte na posição de sujeito produtor de saber e não de um objeto passivo que absorveria o saber pronto e acabado do mestre. Aqui ele dá o tom de seus Seminários: difíceis, irônicos, truncados, faltosos, instigantes...
Mas Lacan não é mestre. A técnica zen, diz ele, possui um limite: mantém o dogma intacto. O mestre zen já possui a resposta (ela é sempre a mesma), apenas aguarda, pacientemente, que seu discípulo esteja preparado para ouvi-la. Mas e Lacan então, o que pretende com seus seminários? Aqui, a princípio, retornar a Freud naquilo que a psicanálise tem de constitutivo, seu vir-a-ser, sua essência não dogmática.
Neste ponto Lacan rompe com qualquer possibilidade de similitude entre o budismo e a psicanálise, ainda que faça uma aproximação, no campo da técnica, entre ambos. Ao contrário do pensamento budista, “o pensamento de Freud é o mais perpetuamente [destaque meu] aberto à revisão. É um erro reduzi-lo à palavras gastas. Nele cada noção possui vida própria.” A técnica psicanalítica não conduz à confirmação de sua identidade teórica, mas à sua negação dialética, modificando-a, ao mesmo tempo que a mantém. Entendo que é na relação entre prática e teoria, na práxis psicanalítica, que os significantes teóricos acomodam significados práticos. É o que nos diz Freud na primeira parte de sua Introdução ao Narcisismo, de 1914 e logo no início de seu Pulsões e destinos das pulsões, de 1915, por exemplo.
Aqui o retorno à Freud é, primeiramente, mas não apenas, o retorno à abertura da teoria à técnica. A técnica seria de tal modo não apenas um meio de aplicação teórica, mas ela própria um motor dinâmico da teoria. Neste sentido o psicanalista não deve, tal qual Procusto, que no horripilante mito cortava os membros de seus hóspedes de modo a fazer com que coubessem na cama que lhes oferecia, cortar qualquer indicativo prático que questione a teoria, moldando de forma acrítica sua experiência a um padrão teórico pré-estabelecido. A clínica deve interrogar a teoria.
Do ponto de vista histórico é bom lembrar que este primeiro seminário publicado de Lacan (1953-54) é expressão de sua denuncia do engessamento técnico e teórico pós-freudiano. Lacan nos ensina que revisar o pensamento de Freud é próprio da psicanálise e tal empreendimento deve ser feito por todo aquele que se pretende psicanalista. Lacan era freudiano. Caberia a nós, segundo ele, a alcunha “lacaniano”. Pois então o trabalho é grande: empreender não apenas o retorno à letra de Freud, mas também retornar ao ensino de Lacan como uma das condições necessárias para manter viva a práxis psicanalítica e o campo aberto por Freud.

Em tempo, agradeço a colaboração e interlocução de Marisa de Costa neste escrito.