domingo, 16 de dezembro de 2018

Em um marca-páginas precioso está escrito que "Não há amigo mais leal que um livro". Isto, como toda verdade, não é de todo verdade, a começar pelo fato de que nem todos estão dispostos a amigar-se ou tornar-se amante, investir libido na literatura. Triste realidade? Diga-me você, mas fato é que a crise editorial que o Brasil atravessa neste exato momento atesta isso. Ler funciona para alguns e parece que não são muitos. Ou seria verdade que os leitores estariam migrando para formas não impressas de leitura? Pode ser, mas  os memes e o youtube fazem mais sucesso que downloads de livros... Bem, para estes alguns, sim, o livro é o provável amigo mais leal que pode existir. Mesmo quando nos trai as expectativas, pois não importa: a mobilização de afetos, sua transformação e destino final, quando se experimenta alguma literatura, penso que é o que importa.
   
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E assim, por vezes gosto de centrar-me nos problemas ínfimos e ilusórios que a vida psíquica me impõe. No momento ocorre uma briga que deveria ser de Titãs mas que se assemelha, não sei bem o por que, à uma briga de galos. A luta parece-me desigual, e o vencedor anunciado antes do fim é Gabriel García Márquez. Nabokov foi o primeiro a subir no ringue, com sua Lolita, e apenas Lolita. Lo-li-ta. Para mim, às vésperas de terminá-la (e sempre sou assaltada de bizarra ansiedade ao aproximar-me do fim de uma história), apesar de algum encanto, Chatita. Terminar o livro, questão de honra, não de gosto, sob a interrogação do porque este seria um clássico, é isso e apenas isso o que acredito mover-me. A cada duas das intermináveis páginas, o afeto não quero te ver tão cedo, típico de um amor clandestino do qual se goza sem querer admiti-lo, aflora. Neste percurso, quase que num tropeço, cruzei com uma declaração de Nabokov sobre Dostoiévski, segundo o qual seria um escritor de terceira categoria e com fama incompreensível. Que audácia! Que ódio, que raiva! Quem é este homem de escrita pedante, redundante, que não sai do lugar, para falar semelhante asneira? Desgraçado, Nabokov idiota, cara de mamão, sim, vou te xingar feito uma lolita! Foi momento de deixar a leitura de lado, aquela heresia abriu-me a porta da traição. Foi nessa agonia que Gabriel apareceu com suas Memórias de minhas putas tristes. 

Ali encontrei poesia, numa história que, contada sob outra forma, facilmente se classificaria como repugnante. Mas espere aí: o mesmo pensamento pode se aplicar à Lolita. Pois o problema de Lolita é que, a despeito da não-fluidez do texto, cansativo e arrastado pacas, há algo ali que, antes de repugnar, perturba. E excita. Repare bem, mulher, na Lolita que te habita,  e nos inúmeros Humbert Humbert que desfilam pelo mundo. Falo de espíritos: no corpo físico, nem toda Lolita é criança, nem todo Humbert Humbert é  um quarentão. A realidade é e sempre será psíquica. 

Mas sigo Nabokov nesta batalha desleal, para ver onde vai dar, e até o momento sequer descobri quem é, segundo Lacan, o verdadeiro perverso da história. Como o livro termina, ainda não sei. Mas o fim de Memórias de minhas putas tristes, não demorou dois dias para chegar e, sedenta de Gabriel, logo Cem anos de solidão caiu em minhas mãos. Menos de 50 páginas e eu já estava hipnotizada, jurando amor eterno, e foi aí que o galo Nabokov, ensanguentado, como que atravessado por uma lança, deitou-se morto no ringue. Porém, graças à seu fantasma, terminarei de ler Lolita, enquanto perambulo insone por Macondo...


Macondo. 


   



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