quinta-feira, 28 de setembro de 2017

 A Formação do analista à partir do Fórum <> Escola[1]

No próximo mês, a "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola"[2] de Lacan completa 50 anos.  Por este motivo, a CLEAG (Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia, uma das instâncias da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano) propôs para o Espaço Escola do Encontro Nacional deste ano que os Fóruns conversassem sobre este texto, para que um representante pudesse levar algo dessas discussões a partir dos eixos: Escola <> Passe; Escola <> Cartel; Escola <> Fórum. Este foi o start para que as atuais coordenadora e delegada do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso DO SUL se propusessem a fazer hoje esta fala, pensando a "Proposição" a partir do eixo Escola <> Fórum.   

Para começar preciso passar minimamente por nossa sopa de letrinhas[3]. São muitas instâncias, dispositivos e siglas que compõe a estrutura que denominamos "Campo Lacaniano". Mas acreditem, este mosaico ou esta sopa de letras, pura neblina num primeiro contato, vai se dissipando na medida em que se os experimenta. Digo isto justamente a partir de minha experiência enquanto membro de Fórum e membro de Escola.  

Os Fóruns do Campo Lacaniano... a criação de uma instância internacional que congrega Fóruns de vários países, a Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano, ou IF-EPFCL, veio em resposta, saída, ou solução à crise e ruptura de alguns (vários) com a Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Tal crise ficou conhecida como “A cisão de 98”. Então temos a Internacional dos Fóruns e, no Brasil, uma Associação Nacional, cujo nome fantasia (e que provoca mesmo muitas fantasias) é EPFCL-Brasil (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano). A Associação é o Fórum local e os Fóruns regionais, como o nosso no caso, ou São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Aracajú, Joinville, Curitiba, etc, etc..., ligam-se à Associação, que é quem dá suporte financeiro e jurídico à Escola. 

Ser membro de Fórum não é o mesmo que ser membro de Escola e, bem, não vou tratar aqui das exceções (É claro que elas existem! Que bom!), mas posso dizer que a entrada em um Fórum é um primeiro passo em direção à Escola. Os Fóruns congregam todos aqueles, incluindo psicanalistas, mas não apenas, que, de alguma forma, estão concernidos pelo discurso psicanalítico e que estão dispostos a, a seu modo, trabalhar para sustentar tal discurso na civilização.  Dito com Vera Iaconelli, lugar daqueles que tomam para si "as questões sobre a formação, a transmissão e o fim da análise", questões estas que impregnam "todo o campo do Fórum"[4]

Falar do laço entre Fórum e Escola implica falar da formação do psicanalista. Parto de uma questão: o que é que se ganha sendo membro de um Fórum do Campo Lacaniano? Qual a vantagem?  Imersos na lógica capitalista que estamos, lógica tal que reduz os objetos de desejo a mercadorias a serem consumidas e descartadas, nesta lógica a pergunta não está fora de contexto. Mas a resposta talvez sim: Trabalho. Lacan, no "Ato de Fundação"[5], em 1964 (e gosto de ler a "Proposição" como texto em continuidade com o "Ato"), define sua Escola como um organismo de trabalho. O que se ganha sendo membro de Fórum e, de modo geral, posteriormente, mas não necessariamente, membro de Escola, é trabalho... Trabalho causado pela psicanálise, trabalho no sentido de restaurar a relha cortante da verdade psicanalítica, instituída por Freud; trabalho no sentido de garantir que a práxis, vejam bem, PRÁXIS, original que Freud inaugurou sob o nome de psicanálise cumpra "o dever que lhe compete em nosso mundo", cabendo aí a crítica assídua que denuncie os desvios e concessões que poderiam amortecer o progresso e degradar o emprego da psicanálise (LACAN, 2003, p. 235).

, tá, tá, sopa de letrinhas, trabalho, práxis... Mas e a formação? Bem, desde sempre, quero dizer, desde Freud, a formação do psicanalista se dá a partir do já famoso tripé: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão.  Em relação à Escola de Lacan, a formação foge ao padrão, ao padrão universitário, dos cursos, do diploma, da carteirinha, de um tempo previamente estipulado. A garantia de analista não passa por aí. Tão pouco passa por um mestre que autorizaria o sujeito, que lhe diria "vá, você está pronto, la garantia soy jo!". Não. E isto pode causar confusão, decepção. "Como assim, eu entro nesta biroska, ganho com isso trabalho e nenhum curso intensivo que garanta que em tantas lições serei psicanalista? E a análise, me diga aí, quanto tempo tenho de fazer, 5, 7, 20 anos?" Ah, o que posso dizer? Como medir o tempo de assunção do sujeito do inconsciente, que é lógico e não cronológico? Por que não permitir que cada um trilhe o caminho aberto por Freud e tire disso as consequências que convém ao fazer psicanalítico?  

Com a ajuda de Dominique Fingermann sustento a ideia de que a formação do psicanalista e o futuro da psicanálise depende de uma intranquilidade, um desconforto, um desassossego. É esta intranquilidade que nos impulsiona, aos analistas, a criar dispositivos que não reduzam a psicanálise à “mera técnica desfalcada de sua orientação ética”[6]. Cito-a:

"... não se pode responder à questão da formação do analista com preceitos, cartilhas e programas, estabelecidos como sabemos com as melhores das intenções [...] as propostas de formação de analistas coerentes com o ensino de Lacan não se dedicam a promover um 'ensino' da psicanálise nem a responder às demandas de formação de psicanalista: não se trata de formar ou formatar analistas, mas de propor um campo de experiência e de interlocução no qual estará à prova o desejo de analista, ou seja, a deformação que as análises pessoais teriam eventualmente produzido [...] é na escola do inconsciente que o analista se transforma, não na escola dos professores."


"Ah tah, trilhar o caminho aberto por Freud, fazer análise, supervisão, estudar a teoria, isso tudo eu posso fazer muito bem prescindindo de Fórum, Escola, e toda essa complicação. Se ‘é na escola do inconsciente que o analista se transforma e não na escola dos professores’, por que a Escola?" Gente, pergunta difícil! Proponho uma resposta furada, não-toda. E para isto, recorro à aniversariante do mês que vem, a “Proposição”. Ali Lacan estabelece um princípio: “o psicanalista só se autoriza por si mesmo” (e esta afirmação é suscetível a todo tipo de equívoco. Autorizar-se por si mesmo não tem a ver com um Eu que se auto-afirma “sou psicanalista, u-hu”. Na verdade, será psicanalista aquele que, prescindindo da autorização do Outro, autorizou-se ao ato analítico, e isto é apreendido à posteriori, uma vez que o ato não é calculado pelo Eu). Mas tá, “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”, mas, sigo com Lacan, “isto não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação. E o analista pode querer essa garantia. ” No seminário 21, Lacan retoma isto de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo e acrescenta: ... "e por alguns outros". Quer dizer, por seus pares.

Quanto à Escola, costumamos nos referir a ela como refúgio do mal-estar na civilização. Quinet a situa como a “estranha” na civilização. Gosto também de uma definição que ouvi de Silvana Pessoa[7], da Escola como um lugar onde as pequenas Antígonas que são os analistas podem se encontrar. E acho excelente quando Dominique Fingermann se refere à ela como campo de experiência e de interlocução. Advertida quanto à solidão do ato analítico, sustento que a escolha por fazer parte de uma comunidade de trabalho pode amenizar tal solidão.

Isto não significa que tudo seja lindo, perfeito e harmônico dentro de uma comunidade de analistas. Não.  "... a Escola não é apenas local de bem-estar, já que acolhe o mal-estar da civilização - seu rebotalho, o objeto a – para que haja chance de o discurso do analista aí ocupar um lugar na circulação dos discursos."[8] Não é do paraíso na terra que se trata. As crises e rupturas estão inscritas na história do movimento psicanalítico. Nos Fóruns e na Escola, o laço deve se dar em torno da causa analítica, movimentado pelas transferências de trabalho. O que, é claro, não excetua os laços fraternos, laços de amizade, as afinidades, mesmo porque isto é inevitável. Não estamos livres das idealizações e tão pouco do narcisismo das pequenas diferenças, que segrega em nome da coesão do grupo. Ou seja: as comunidades psicanalíticas não estão imunes aos efeitos de grupo. O que impediria, por exemplo, que analisandos que tenham o mesmo analista liguem-se entre si, identificando-se, portanto, no nível do eu ideal uns com os outros, em torno daquele colocado como ideal de eu, o analista (com toda ambivalência que pode estar presente aí, é claro) num movimento de apagamento e isolamento daqueles que não fazem parte da patota? Isto é só um exemplo, uma forma de colocar em imagem a questão, vejam como o combate à estrutura da psicologia das massas é uma constante. Afinal, ainda que alguém não se coloque na posição de mestre, chefe, líder, UM, o que seria pura impostura, este alguém pode ser alçado à esta posição por conta das transferências que suscita, e deve responder à altura. Não foi a troco de nada que Lacan propôs como base de trabalho em sua Escola o cartel.

Uma comunidade em que, como escreve Maria Anita Carneiro Ribeiro a respeito da cisão de 1998, “circulem os quatro discursos e, sobretudo, da qual o discurso analítico não esteja excluído”[9] é algo que nos desafia a todo momento. E o que posso dizer por enquanto, considerando meu percurso e experiência, é que nosso Fórum, a Associação e a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano tem respondido este desafio à altura.  






[1] Fala apresentada no Espaço Escola do FCL-MS em 16-09-2017.
[2] LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 248-264.
[3] Coisa que Andrea Rodrigues fez muito bem em Stylete Lacaniano 1.
[4] IACONELLI, V. AEscola. In:  Stylus: Revista de Psicanálise, n.34. Rio de Janeiro:  AFCL/EPFCL – Brasil, 2017, PP. 139 144. 
[5] LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235-247.
[6] FINGERMANN, D. A (de)formação do psicanalista: as condições do ato psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2016, p. 32.
[7]  Ética e desejo de analista – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino, https://lacaneando.com.br/audio/.
[8] QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 120.
[9] RIBEIRO, M.A.C. A cisão de 1998. In: Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n 137, pp. 83-89.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A Vênus despedaçada

Em Dourados, no Ágora Instituto Lacaniano e sob a condução de Claudia Wunsch, seguimos estudando A psicopatologia da vida cotidiana de Freud, texto de 1901. De modo geral os psicanalistas sabem que se deve retornar over and over à Freud: há sempre algum canto, que se apresenta como novo, a ser iluminado. No meu caso, este texto tem um sabor especial por me lembrar o quanto o inconsciente aparece nas pequenas coisas do cotidiano, está na superfície, estruturado como uma linguagem, basta que estejamos atentos.

No capítulo sobre os “Equívocos na ação”, Freud gentilmente nos conta um episódio que se deu num período em que uma de suas filhas encontrava-se doente. Em seu íntimo, Freud já a havia desenganado. Porém, na manhã em que soube “que tinha havido uma grande melhora” e que ela provavelmente sobreviveria, ao passar por um quarto de roupão e chinelos de palha, cede à um impulso repentino e atira um dos chinelos na parede, de modo a fazer cair e despedaçar-se no chão uma estátua de mármore da deusa Vênus. Sua interpretação sobre o ocorrido: “Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de gratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrificial’, como se tivesse feito uma promessa de sacrificiar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela recuperasse a saúde!”

A primeira ideia que me ocorreu foi um vago pensamento sobre o quanto a religiosidade nos antecede e compõe as coordenadas simbólicas nas quais nos inscrevemos. A noção de um ser superior que nos protege e nos pune, ainda que o chamemos Destino, é mais forte no inconsciente que qualquer consciência laica. O Freud ateu, de “Totem e Tabu” e “O futuro de uma ilusão” não se furtou a realizar um ritual de sacrifício em nome da melhora de sua filha.

A segunda ideia, uma lembrança: anos atrás o rapaz que eu namorava presenteou minha mãe com um relógio de parede. Ele queria conquistar sua afeição para que nosso namoro pudesse transcorrer sem maiores acidentes. Mas o relógio... ah, era horroroso! Fiquei envergonhada diante de tamanho mau gosto, confesso. A opinião de minha mãe não era diferente, mas, por educação, o relógio foi pendurado num lugar de destaque da casa. Pra piorar a situação, o bendito, a cada hora redonda, tocava uma música, pra nos lembrar de sua existência medonha no recinto. Num belo dia, num acesso de fúria adolescente do tipo “rebelde sem causa”, diante de uma negativa de meus pais a um pedido bobo, inusitadamente peguei a primeira coisa que vi na frente, uma chave no caso, e atirei com força para o alto. Qual não foi minha surpresa: acertei em cheio o relógio, que caiu do alto e se espatifou. A sensação foi de alívio. Minha mãe abriu um largo sorriso antes de me repreender...