domingo, 31 de maio de 2020

Vejam só, que bonita a forma como Dostoiévski  escreve sobre lembranças infantis ao narrar sua personagem que perdeu a mãe aos três anos de idade e que conserva desta a lembrança de seu rosto e de seus carinhos. Escreve ele que as lembranças infantis "podem ser conservadas (e todo mundo sabe disso) desde a mais tenra idade, até desde os dois anos, mas durante toda a vida só se manifestam como uma espécie de pontos de luz saídos das trevas, de um cantinho de um imenso quadro que se apagou e desapareceu por inteiro, excetuando-se apenas esse cantinho." Achei bonito isto, fez-me pensar no Freud das lembranças encobridoras e no quanto esses cantinhos iluminados da memória são fotografias que recobrem enquadramentos psíquicos que nos perseguem, que se reatualizam e se eternizam no moldar nossa realidade, sempre psíquica. Na lembrança que este garoto guardou de sua mãe, ela esta muito aflita, chorando, o abraçando à ponto de machucar e, desesperada, o ergue em direção à imagem de Nossa Senhora, como quem o entrega para que a Virgem o proteja. "Que quadro!", escreve Dostoiévski. Será acaso tal personagem tornar-se noviço? À propósito, estou falando de Aliócha Karamazov. 



terça-feira, 31 de março de 2020

Pandemia I - Ela

O que mais lhe chama a atenção é que, passados quase 15 dias de isolamento, suas noites tem sido ótimas, quer dizer, tem dormido muito bem. O medo de perder quem mais ama, o medo do depois, a realidade tem sido paralisante. No entanto, dorme feito bebê. Nada daquele acordar no meio da noite com o coração disparado, tão típico de seus dias de angustia. Sono pesado, sono gostoso. Sonha. Sonhos que se sabem sonhados mas dos quais se esquece. Leu dia desses em Freud que esses são os sonhos que melhor cumprem sua função, que é a de manter o sono [1]. 
Sua primeira reação diante do vírus foi querer sumir do mundo. Tem um pouco de preguiça, talvez seja inveja, daqueles que desde o primeiro dia de quarentena tinham algo para dizer ou fazer dela. Ela, ela não sabe de nada. Entende o que está acontecendo, mas não compreende. Porque, lá no seu fundo mais apavorado, acredita que isto tudo só será compreendido depois. O que não impede as pessoas da tentativa de simbolizar o que é e o que virá disso tudo, é, deve ser inveja o que ela sente. Inveja e admiração. Porque ela não consegue. O que consegue é visualizar a última cena de Melancolia e desejar que acontecesse. É um desejo mentiroso, mas vejam que interessante: ela não quer morrer, não sozinha. Antes, deseja que se for para Um dos seus morrer, que todos pereçam, tamanho é o medo do que virá depois. 
Mas ela dorme feito bebê (aqueles raros, que dormem a noite toda). Goza, na dependência de um homem. 

[1] - FREUD, S. Alguns complementos à interpretação dos sonhos. Obras completas, vol.16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 320: "Segue-se que para o Eu que dorme é indiferente, no conjunto, o que durante a noite é sonhado, desde que o sonho realize sua incumbência, e que os sonho de que nada sabemos dizer após despertar são aqueles que melhor cumpriram a sua função." 
31-03-2020.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Em uma análise não se trata de encontrar a parte que falta, mas de fazer da falta que nos habita causa que impulsiona, causa de desejo. "Não ceder de seu desejo" é poder perceber para que lado Eros aponta e caminhar corajosamente nesta direção.





domingo, 16 de dezembro de 2018

Em um marca-páginas precioso está escrito que "Não há amigo mais leal que um livro". Isto, como toda verdade, não é de todo verdade, a começar pelo fato de que nem todos estão dispostos a amigar-se ou tornar-se amante, investir libido na literatura. Triste realidade? Diga-me você, mas fato é que a crise editorial que o Brasil atravessa neste exato momento atesta isso. Ler funciona para alguns e parece que não são muitos. Ou seria verdade que os leitores estariam migrando para formas não impressas de leitura? Pode ser, mas  os memes e o youtube fazem mais sucesso que downloads de livros... Bem, para estes alguns, sim, o livro é o provável amigo mais leal que pode existir. Mesmo quando nos trai as expectativas, pois não importa: a mobilização de afetos, sua transformação e destino final, quando se experimenta alguma literatura, penso que é o que importa.
   
... 

E assim, por vezes gosto de centrar-me nos problemas ínfimos e ilusórios que a vida psíquica me impõe. No momento ocorre uma briga que deveria ser de Titãs mas que se assemelha, não sei bem o por que, à uma briga de galos. A luta parece-me desigual, e o vencedor anunciado antes do fim é Gabriel García Márquez. Nabokov foi o primeiro a subir no ringue, com sua Lolita, e apenas Lolita. Lo-li-ta. Para mim, às vésperas de terminá-la (e sempre sou assaltada de bizarra ansiedade ao aproximar-me do fim de uma história), apesar de algum encanto, Chatita. Terminar o livro, questão de honra, não de gosto, sob a interrogação do porque este seria um clássico, é isso e apenas isso o que acredito mover-me. A cada duas das intermináveis páginas, o afeto não quero te ver tão cedo, típico de um amor clandestino do qual se goza sem querer admiti-lo, aflora. Neste percurso, quase que num tropeço, cruzei com uma declaração de Nabokov sobre Dostoiévski, segundo o qual seria um escritor de terceira categoria e com fama incompreensível. Que audácia! Que ódio, que raiva! Quem é este homem de escrita pedante, redundante, que não sai do lugar, para falar semelhante asneira? Desgraçado, Nabokov idiota, cara de mamão, sim, vou te xingar feito uma lolita! Foi momento de deixar a leitura de lado, aquela heresia abriu-me a porta da traição. Foi nessa agonia que Gabriel apareceu com suas Memórias de minhas putas tristes. 

Ali encontrei poesia, numa história que, contada sob outra forma, facilmente se classificaria como repugnante. Mas espere aí: o mesmo pensamento pode se aplicar à Lolita. Pois o problema de Lolita é que, a despeito da não-fluidez do texto, cansativo e arrastado pacas, há algo ali que, antes de repugnar, perturba. E excita. Repare bem, mulher, na Lolita que te habita,  e nos inúmeros Humbert Humbert que desfilam pelo mundo. Falo de espíritos: no corpo físico, nem toda Lolita é criança, nem todo Humbert Humbert é  um quarentão. A realidade é e sempre será psíquica. 

Mas sigo Nabokov nesta batalha desleal, para ver onde vai dar, e até o momento sequer descobri quem é, segundo Lacan, o verdadeiro perverso da história. Como o livro termina, ainda não sei. Mas o fim de Memórias de minhas putas tristes, não demorou dois dias para chegar e, sedenta de Gabriel, logo Cem anos de solidão caiu em minhas mãos. Menos de 50 páginas e eu já estava hipnotizada, jurando amor eterno, e foi aí que o galo Nabokov, ensanguentado, como que atravessado por uma lança, deitou-se morto no ringue. Porém, graças à seu fantasma, terminarei de ler Lolita, enquanto perambulo insone por Macondo...


Macondo. 


   



quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo.

Tive um sonho, não tão belo quanto o de Martin [1], mas ainda assim um sonho. Em tempos sombrios, que parecem encobrir uma escuridão ainda maior porvir, sonhar, quando é possível dormir, costuma ser a melhor parte. 

No sonho, estava eu em Belo Horizonte, na praça Roosevelt (Existe por lá uma praça com este nome? Não sei, não importa, o trabalho do sonho segue seu próprio caminho de distorção). Estavam comigo nesta praça pessoas que lutam e que desejam outra coisa que não um Outro que autoriza e incentiva a violência, o discurso da segregação e cuja política econômica objetiva ferrar os trabalhadores (não se enganem!). Pessoas que, assim como eu, estão aflitas, com medo. 

Todos sabem ou deveriam saber: os sonhos são a realização, distorcida, de desejos inconscientes. Tal distorção requer muito trabalho, o "trabalho do sonho" no léxico freudiano. Em um de seus textos tardios encontrei uma formulação interessante, que corrobora aquilo que se percebe na clínica psicanalítica: em seu âmago o sonho expressa um desejo sexual infantil recalcado, ok. Mas em sua interpretação é possível encontrar várias camadas de significação, algumas mais superficiais, que expressam desejos imediatos, nem tão inconscientes assim. Segundo Freud "há dois tipos de motivo para a formação do sonho. Ou uma moção de impulso normalmente reprimida (um desejo inconsciente) encontrou durante o sono a força para se fazer valer no eu, ou uma aspiração que sobrou da vida de vigília, uma sequência pré-consciente de pensamentos com todas as moções conflituosas a ela ligadas, encontrou no sono um reforço por meio de um elemento inconsciente. Ou seja, sonhos provenientes do isso ou do eu."[2]

É como se meu Eu, menos inflado após tantos anos de análise, mais humilde e permeável ao saber inconsciente, tivesse-me dito ao Isso: Ajude aí cara, acalme a moça!! Explico-me: é que ao despertar lembrei-me imediatamente de um texto que lera na véspera [3]. Nele havia a citação de uma frase proferida por Roosevelt em seu primeiro discurso como presidente dos Estados Unidos: "A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo". Seria este o Belo Horizonte?  




quinta-feira, 18 de outubro de 2018

R-existir em Dourados

Na noite de ontem, o Seminário de Literatura e Psicanálise que conduzo em Dourados/MS seria sobre Hamlet; foi sobre outra coisa.
"Estou morta", diz uma participante. To be or not to be? Resistir.
Não foi sobre Hamlet, foi sobre democracia. 
No ato, o encontro tornou-se uma roda de conversa, não inesperada, mas sim, necessária.
A fala circula, cria corpo, ganha vozes, experiências são trocadas. Resistir.
Freud se faz presente: Por que a guerra? Que mal-estar é esse que vivemos hoje na cultura? Como entendê-lo, enfrentá-lo? A sexualidade permanece como questão, sintoma. Cadê os 3 ensaios sobre a teoria da sexualidade para nos ajudar a entender por que o kit gay, que não existe, insiste no discurso falacioso de quem quer nos silenciar? Daqueles que, tal como Édipo-Rei, último texto por nós estudado, não querem saber, não querem escutar? Resistir.
Mas como é r-existir em Dourados? Você sabe o que é Dourados? "Ruas feitas todas de flores e um pouco de sangue, isso é Dourados; índio não entra no Shopping que branco não gosta, isso é Dourados" [1] Pacientes, amigos, laços familiares perdidos. É o preço por posicionar-se publicamente. Não recuaremos! Os ouvidos têm paredes, de nada adianta gritar [2]. Como então sussurrar até que nossa voz atravesse as frestas das paredes dos ouvidos moucos?
TEAR DOWN THE WALL, nos grita Roger Waters, derrubem as paredes, derrubem o muro!
Chegamos ali, naquela noite quente, como ilhas. Ilhas isoladas num mar de ignorância e, porque não, canalhice. Mas por força das palavras, do ato de nos abraçar via palavra, nós, ilhas, nos movemos à ponto de formar um pequeno continente. Se o significante mestre for a democracia, vale à pena fazer grupo.
Por fim, outra participante traz Drummond:
Mãos dadas
"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente."
Saímos de lá. Vivos!
Francina Sousa.
#Haddad13
[1] - Dourados state of mind, Ruspô. Escutem:  https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGRRiw
[2] - Tiranias, Ruy Proença.