Deparei-me com o primeiro curta de Martin Scorsese, The Big Shave (1967) e ele causou-me forte impressão. Bom, melhor seria dizer que me causou um tremendo estranhamento, de embrulhar o estômago! Mas apesar deste estranhamento todo, enquanto esfregava aflitivamente uma mão na outra não consegui desgrudar os olhos do que associei à uma tela de devaneios onde pintara-se o retorno do recalcado, a ansiedade de castração, a compulsão à repetição... Um de meus barbudos preferidos ja explicou que uma criação artística nos remete aos elementos mais profundos da alma humana, uma vez que a arte está calcada no registro das pulsões. Lembrei-me dele dizendo que para além do belo e da harmonia pode haver na arte uma dimensão de estranhamento, uma inquietação aparentemente estrangeira que nos remete à algo familiar, que deveria, como diz o Schelling, ter permanecido secreto e oculto mas que veio à luz! Retorno do recalcado, essa coisa que nos causa uma agonia danada! A apreensão e o desassossego que acompanharam-me durante a repetição crescente contida na cena fez-me pensar na prisão, desenhada por um Outro, em que o neurótico se confina. Pensei em sua repetida queda nas mesmas armadilhas, sua tendência a confundir o mais do mesmo em sua vida com novidade, a sangrar cotidianemente a mesma dor, a mesma amargura, sem se dar conta de que quem segura a lâmina é ele mesmo...
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Meu encontro com Freud
Um homem aproximou-se e estendeu-me a
mão. Apresentou-se como Mário de Andrade e aquele parecia um nome importante.
Conversamos por algum tempo, na verdade ele falava e eu ouvia, e achei tudo o
que ele dizia fascinante. Contou-me sobre uma professora quarentona de francês
e suas fantasias relacionadas à certa catedral. Deu-me pistas sobre algo que
anos mais tarde eu conheceria como histeria. Mas a história que mais me
impressionou foi a de um jantar protagonizado por um delicioso peru.
Protagonizado? Não, não sei se posso me expressar assim. Mas em um primeiro momento o peru pareceu-me
o elemento central daquela história. Mario alertou-me: “tem certeza de que é do
peru que se trata?” Tentou então explicar-me sobre o pai, que na história
estava morto, logo, eu não havia lhe dado muita importância. Era simbólico
demais pra a minha cabeça de dezesseis anos, mas dizem os psicanalistas que o
pai, no plano simbólico, é o pai morto, não? Mario percebeu minha inquietação e disse: “Se
você esta achando esta conversa interessante, deveria conhecer outro homem”, e o apresentou como Freud. Nome familiar, afinal, quem na
vida não ouvira a máxima “Freud explica”? Este tal de Freud, com um charuto entre os dedos e uma barba bem feita, começou a falar
animadamente sobre certas instâncias psíquicas, id, ego e superego e o mais
chocante, sobre sexualidade infantil. “O que? Eu já desejei ter um filho de meu
pai?” arregalei os olhos! A única coisa que consegui de fato entender é que o
ser humano não é onde pensa ser, coisa que Lacan explicou-me bem anos depois.
Deixei toda aquela complicação de lado.
Tempos depois um homem feio, de barba
comprida e cabelos ralos, com um nome estranhíssimo, achegou-se a mim com um
papo sobre um assassinato. O assassino tinha um nome ainda mais estranho que o
seu: Raskólnikov. O jovem assassino, que se considerava um homem
extraordinário, sucumbe à culpa e não vê saída senão confessar seu crime. Ou
teria cometido o crime movido por ela? Fiquei curiosa com essa coisa de culpa.
De onde ela viria? O homem barbudo, Dostoiévski eu acho, disse-me que lá no
fundo todos nós já desejamos cometer um assassinato. Fiquei perplexa. Ele
tentou explicar-me a questão com mais uma de suas histórias: a de um pai que é
assassinado por um de seus filhos. Que horror! Mas a história era tão atraente que em vários momentos cheguei a pensar que aquele Karamazov, pai todo gozador,
merecia mesmo o destino que lhe fora traçado. Percebendo minha empolgação,
Dostoiévski contou-me que conhecia um homem que parecia saber muito sobre a
alma humana (não mais que ele é certo!). “Ele até escreveu um artigo sobre
minha pessoa!” disse-me. Mais uma vez quem apareceu foi aquele senhor barbudo da
sexualidade infantil. Bem, tive de depor minhas armas...
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
Anti Cristo
Parte II - Freud está morto.
Ok, sei que precisamos falar sobre Kevin, mas não é o momento, não o meu... Depois de tanto tempo, continuo (ainda) a ruminar esse Trier... No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz pra sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo. Lembrei-me de algo que li: “O desejo
rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho)
agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode
você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos sonhos e não pude
deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de
noções em
psicanálise. Aliás, como escreveu uma amiga, parece que praticamente toda psicanálise está nesta obra... Acho fantástico que Freud tenha, em plena
modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente
(sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu
cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso? Penso que, assim como
Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda
forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso? Freud pode estar morto, mas suas idéias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso.
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
E
logo na abertura do Seminário 1 Lacan dá o tom: “O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta
quando os alunos estão a ponto de encontrá-la. Essa forma de ensino é uma
recusa de todo sistema.” Penso que aqui Lacan marca não apenas a
necessidade de retorno ao pensamento de Freud, que segundo ele é perpetuamente
aberto à revisão, mas também marca um posicionamento político em relação à situação
da psicanálise naquele momento, década de 1950. Sua fala quanto ao mestre
faz-me pensar no próprio ensino por ele proposto ao longo de seus Seminários.
“Lacan é muito difícil, é incompreensível!!!!” - é o que se escuta por aí. Mas a
forma de ensino inaugurada por Lacan tem lá seus motivos, afinal a psicanálise
não é apenas uma técnica que se aplica e sim uma prática que se transmite. Tenho
a impressão de que Lacan, com todo seu barroquismo, nos convida a decifrá-lo. Não
nos dá uma resposta pronta, antes nos faz questionar o mundo e a nós mesmos. Convida-nos
a procurar um saber, não qualquer um, mas o saber inconsciente. E tenho a viva
impressão de que à medida que se caminha em uma análise, lugar privilegiado de “procura-ação”
do desejo inconsciente, o ensino de Lacan ganha cada vez mais sentido...
...
E naquele dia de estudo surgiu a
questão: a psicanálise é ou não é uma ciência? Uma questão aparentemente
inocente e que mereceria uma resposta objetiva (ao gosto da dita ciência): sim ou não. Mas quando se trata de psicanálise, nada é assim tão objetivo,
não é mesmo? Em outro lugar escrevi que a formação
psicanalítica (e a psicanálise) perturba o conforto das dicotomias da
epistemologia ocidental – teoria e prática, sujeito e objeto – pois entendo que
apesar de psicanálise e ciência tratarem do mesmo sujeito, aquele advindo da
modernidade, o lugar que este ocupa nos Discursos da Ciência e da Psicanálise
não é o mesmo. Por isso a psicanálise conFUNDE nossa cabeça ao dizer de um
sujeito que se coloca como objeto (o analista) e um objeto que é tratado como
sujeito (o analisando). É no lugar de objeto (causa de desejo) que o
psicanalista (a psicanálise) instiga aquele ali deitado no divã a perSEGUIR seu
desejo; coloca o sujeito do inconsciente em ação, capturando-o na linguagem,
nos significantes, para que a consciência dele se dê conta. É por isso que o
psicanalista não dá respostas prontas, mas permite ao sujeito caçá-las por sua
própria conta e risco. É o posicionamento do psicanalista em sua prática que permite
ao sujeito buscar, reconhecer e responsabilizar-se por seu desejo. A práxis psicanalítica é transmitida no um a um, como nos ensina Lacan, e permite-nos,
após ler complicadas palavras “significantes”, ainda que não se entenda tudo ou
que se entenda muito pouco, ao invés de desistir, ter um delicioso desejo (por
vezes amalgamado em angústia) de saber mais! Quanto à questão da psicanálise
ser ciência ou não, a indicação de texto que Maria Luiza fez (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98932005000100006&script=sci_arttext&fb_source=message)
é um ótimo aperitivo e, para os mais ousados, o texto de Lacan “A ciência e a verdade”
esclarecedor.
sábado, 7 de abril de 2012
Um dia em que o desejo falou?
Há 3 anos atrás ela era mãe há 2. O mês, maio, e o dia que lhe fora destinado pelo comércio estava se aproximando. Uma criança de 2 anos não poderia escolher o presente para lhe dar, a escolha sobraria então para o pai da criança. A ideia de deixar a escolha nas mãos dele, lá no fundinho, lhe agradava, pois sabia que, como sempre, ele faria uma má escolha, e ela teria motivo suficiente para apontar aquele erro e reclamar, seu esporte histérico preferido. Mas estava, sabe-se lá o por quê, cansada do jogo de reclamação, e ri disso enquanto, no divã, conta esta história. Decidiu que ela escolheria o presente, restaria ao pai apenas o trabalho de compra-lo, e este aceitou o "desafio" com satisfação. Mas o que escolher? Um livro! foi o que lhe passou pela cabeça. Que livro? Dostoiévski, claro! Qual obra? Bom, aqui chegamos à um nível maior de dificuldade. Deveria ela escolher uma obra que lera na adolescência, uma que nunca lera, uma obra maior ou uma (dita) obra menor? A brincadeira da escolha parecia tão divertida que pediu ajuda ao google. E lá, em meio a tantos Dostoiéviskis enxergou um nome importante: Freud. Só aí se deu conta de que em "Dostoiéviski e o parricídio" Freud escrevera que Os Irmãos Karamazovi era o maior romance já escrito. Pronto, a decisão estava tomada, Freud escolhera por ela. "Não, você escolheu por Freud" corta a analista.
sábado, 31 de março de 2012
Sozinha
Sozinha, sozinha... sozinha,
significante que, paradoxalmente, tem me feito companhia nos últimos dias. Não
que o cotidiano seja solitário, nada disso. A realidade é psíquica e é de lá
que ecoa “sozinha, sozinha... sozinha”. Soz-inha. Meu pai costumava chamar
minha mãe de Inha. Não chama mais. Meu irmão costumava chamar-me CinInha. Não chama mais. Costumava me fazer companhia. Não
faz mais. Há 29 anos ele me deixou e só agora
ensaio deixa-lo. Deixa-lo, como dizem os cristãos, descansar em paz, pra tentar
caminhar sozinha, sozinha... sozinha.
sábado, 24 de março de 2012
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