quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Anti Cristo

Parte II - Freud está morto.

Ok, sei que precisamos falar sobre Kevin, mas não é o momento, não o meu... Depois de tanto tempo,  continuo (ainda) a ruminar esse Trier... No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz pra sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo. Lembrei-me de algo que li: “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos sonhos e não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de noções em psicanálise. Aliás, como escreveu uma amiga, parece que praticamente toda psicanálise está nesta obra... Acho fantástico que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso? Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso?  Freud pode estar morto, mas suas idéias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso. 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

E logo na abertura do Seminário 1 Lacan dá o tom: “O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la. Essa forma de ensino é uma recusa de todo sistema.” Penso que aqui Lacan marca não apenas a necessidade de retorno ao pensamento de Freud, que segundo ele é perpetuamente aberto à revisão, mas também marca um posicionamento político em relação à situação da psicanálise naquele momento, década de 1950. Sua fala quanto ao mestre faz-me pensar no próprio ensino por ele proposto ao longo de seus Seminários. “Lacan é muito difícil, é incompreensível!!!!” - é o que se escuta por aí. Mas a forma de ensino inaugurada por Lacan tem lá seus motivos, afinal a psicanálise não é apenas uma técnica que se aplica e sim uma prática que se transmite. Tenho a impressão de que Lacan, com todo seu barroquismo, nos convida a decifrá-lo. Não nos dá uma resposta pronta, antes nos faz questionar o mundo e a nós mesmos. Convida-nos a procurar um saber, não qualquer um, mas o saber inconsciente. E tenho a viva impressão de que à medida que se caminha em uma análise, lugar privilegiado de “procura-ação” do desejo inconsciente, o ensino de Lacan  ganha cada vez mais sentido...
...

E naquele dia de estudo surgiu a questão: a psicanálise é ou não é uma ciência? Uma questão aparentemente inocente e que mereceria uma resposta objetiva (ao gosto da dita ciência): sim ou não. Mas quando se trata de psicanálise, nada é assim tão objetivo, não é mesmo? Em outro lugar escrevi que a formação psicanalítica (e a psicanálise) perturba o conforto das dicotomias da epistemologia ocidental – teoria e prática, sujeito e objeto – pois entendo que apesar de psicanálise e ciência tratarem do mesmo sujeito, aquele advindo da modernidade, o lugar que este ocupa nos Discursos da Ciência e da Psicanálise não é o mesmo. Por isso a psicanálise conFUNDE nossa cabeça ao dizer de um sujeito que se coloca como objeto (o analista) e um objeto que é tratado como sujeito (o analisando). É no lugar de objeto (causa de desejo) que o psicanalista (a psicanálise) instiga aquele ali deitado no divã a perSEGUIR seu desejo; coloca o sujeito do inconsciente em ação, capturando-o na linguagem, nos significantes, para que a consciência dele se dê conta. É por isso que o psicanalista não dá respostas prontas, mas permite ao sujeito caçá-las por sua própria conta e risco. É o posicionamento do psicanalista em sua prática que permite ao sujeito buscar, reconhecer e responsabilizar-se por seu desejo. A práxis psicanalítica é transmitida no um a um, como nos ensina Lacan, e permite-nos, após ler complicadas palavras “significantes”, ainda que não se entenda tudo ou que se entenda muito pouco, ao invés de desistir, ter um delicioso desejo (por vezes amalgamado em angústia) de saber mais! Quanto à questão da psicanálise ser ciência ou não, a indicação de texto que Maria Luiza fez (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98932005000100006&script=sci_arttext&fb_source=message) é um ótimo aperitivo e, para os mais ousados, o texto de Lacan “A ciência e a verdade” esclarecedor.

sábado, 7 de abril de 2012

Um dia em que o desejo falou?

Há 3 anos atrás ela era mãe há 2. O mês, maio, e o dia que lhe fora destinado pelo comércio estava se aproximando. Uma criança de 2 anos não poderia escolher o presente para lhe dar, a escolha sobraria então para o pai da criança. A ideia de deixar a escolha nas mãos dele, lá no fundinho, lhe agradava, pois sabia que, como sempre, ele faria uma má escolha, e ela teria motivo suficiente para apontar aquele erro e reclamar, seu esporte histérico preferido. Mas estava, sabe-se lá o por quê, cansada do jogo de reclamação, e ri disso enquanto, no divã, conta esta história. Decidiu que ela escolheria o presente, restaria ao pai apenas o trabalho de compra-lo, e este aceitou o "desafio" com satisfação. Mas o que escolher? Um livro! foi o que lhe passou pela cabeça. Que livro? Dostoiévski, claro! Qual obra? Bom, aqui chegamos à um nível maior de dificuldade. Deveria ela escolher uma obra que lera na adolescência, uma que nunca lera, uma obra maior ou uma (dita) obra menor? A brincadeira da escolha parecia tão divertida que pediu ajuda ao google. E lá, em meio a tantos Dostoiéviskis enxergou um nome importante: Freud. Só aí se deu conta de que em "Dostoiéviski e o parricídio" Freud escrevera que Os Irmãos Karamazovi era o maior romance já escrito. Pronto, a decisão estava tomada, Freud escolhera por ela. "Não, você escolheu por Freud" corta a analista. 



sábado, 31 de março de 2012

Sozinha

Sozinha, sozinha... sozinha, significante que, paradoxalmente, tem me feito companhia nos últimos dias. Não que o cotidiano seja solitário, nada disso. A realidade é psíquica e é de lá que ecoa “sozinha, sozinha... sozinha”. Soz-inha. Meu pai costumava chamar minha mãe de Inha. Não chama mais. Meu irmão costumava chamar-me CinInha. Não chama mais. Costumava me fazer companhia. Não faz mais. Há 29 anos ele me deixou e só agora ensaio deixa-lo. Deixa-lo, como dizem os cristãos, descansar em paz, pra tentar caminhar sozinha, sozinha... sozinha.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


Em uma conversa com Maria Rita Kehl, ouvi que com Emma Bovary, Flaubert “criou o retrato da feminilidade ao modo burguês”, feminilidade muito bem situada historicamente e que diz respeito ao lugar destinado à mulher pelo discurso moderno. Em Freud (e não em psicanálise), feminilidade e histeria praticamente se recobrem e não à toa Emma pode também ser apreendida como representação da mulher histérica por excelência. Esse argumento é conhecido e faz muito sentido. Digo “muito” pois se dissesse “todo sentido” estaria traindo o argumento psicanalítico, afinal  há sempre algo que escapa ao humano, algo que falta para completar o quebra-cabeça como um-todo. IMAGINAMOS saber de tudo, SIMBOLIZAMOS para com-viver, mas convenhamos, na REAL, a realidade não passa de ficção, é psíquica!
Seguindo a argumentação de Kehl, penso que Dostoiévski não fez menos em relação à experiência masculina moderna. Se “Flaubert decidiu se valer da biografia imaginária de uma mulher, e fazer fracassar sua empreitada para tornar-se ‘outra’” como forma de denúncia das “tolices e ilusões que alimentam (ainda hoje) o modo de vida burguês”, Dosta, como gosto de chamá-lo, nos convida a um passeio pela angustia daquele cujo lugar no discurso social da recém nascida modernidade é de portador do falo, a angustia de quem se acredita todo ainda que a falta nele pulse em ritmo cardíaco, aquele que é convocado a ser o representante da Lei e no entanto não se sente capaz ou mesmo digno de cumpri-la, permanecendo em dívida.  Dosta representa em suas personagens a contradição, a dúvida, a indecisão, a racionalização, a procrastinação, o sofrimento por uma ideia que se impõe ao pensamento, a sensação de ridículo e absurdo que assolam o homem moderno, em sua maioria, neuróticos obsessivos. Ivan, esse mal-dito Karamazov, perturbado pela culpa por um assassinato que não cometeu, mas pelo qual se responsabiliza; Mítia, outro mal-dito Karamazov, com sua razão desvairada, que só se acalma quando punido pelo crime que não cometeu, como quem assume a culpa. Ambos expressam a ideia de que, do ponto de vista simbólico, somos todos assassinos. Ambos, em sua relação com a lei, e aqui sigo Camus, dizem da inutilidade do crime para o remorso. Pois somos responsáveis por aquilo que desejamos, ainda que desse desejo saibamos apenas os sintomas...

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Anti Cristo

Parte I ou Da ingenuidade da razão.
Em tempos de capitalismo apressado, escrever sobre um filme “antigo” como Anti Cristo de Lars Von Trier, grife do cinema pretenso intelectual (que adoro), pode parecer antiquado. Ressalva sem sentido para o inconsciente, já que ali o tempo não caminha ano após ano, dia após dia, hora após hora... Confesso que demorei certo tempo pra ter coragem de ver o filme. O pano de fundo, um casal que perde seu filho pequeno, e que se isola em uma cabana no meio da mata, parecia assustador e familiar demais pro meu gosto. Só que esqueceram de me avisar que a cena em que o garotinho parece saltar alegremente para a morte era o que havia de menos perturbador no filme. Bem, em tempos de Melancolia, achei que era boa hora de assisti-lo.
Entendo que buscar um sentido pleno ao filme seria incorrer na mesmíssima arrogância do terapeuta que, ao lado da mulher, protagoniza o filme. Faço apenas algumas observações. Frente ao real da perda de um filho, o presunçoso terapeuta considera-se apto a tratar o luto prolongado de sua mulher, e para isso recorre à uma "técnica": confrontá-la com aquilo que lhe causa medo, no caso, uma cabana horrorosa no meio da mata, Éden. Mas não é de Éden, como ele a forçou a concluir, que ela tem medo, e sim da selvageria e obscenidade abafados nos porões do eu. Não à toa ela lhe adverte: “Você é tão arrogante. Mas isso pode não durar, sabia?” Ao quebrar uma lei (a mulher o lembra de que não é prudente tratar alguém tão próxima, porém ele argumenta que ninguém a conhece mais do que ele, numa patética onipotência narcísica da qual a queda será inevitável), ele abre caminho para que a Lei simbólica seja ultrapassada. E paga caro por isso: a mulher literalmente atravessa a arrogância do marido e, em uma das cenas mais fortes, imprime no real a falta que ele luta tanto para escamotear. Em Éden, o caos reina.
O filme faz pensar naquilo que está além do princípio de prazer, o gozo em seu limite, no limite da aniquilação... Nos lembra de que aquilo que foi recalcado permanece indestrutível no inconsciente ou, nas palavras do poeta: E o que desapareceu,/ converte-se para mim em/ realidade. Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso. Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Quando se trata do humano, o buraco, esse vazio ao qual tentamos insistentemente preencher de sentido, é mais embaixo. E é passível de explodir em non sense. Dostoiévski já nos alertara, com seu homem do subsolo, de que dois e dois nem sempre são quatro, e Éden parece trazer à tona o “Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (Zizek). Bem, essas foram minhas primeiras impressões...