domingo, 13 de maio de 2018

This is America

Vem vê mamãe, esse clip tá quebrano a internet, o cara é gênio! E eu acho que você vai gostá.. disse-me ele. Apesar de frequentarmos diferentes internets, de fato a coisa toda chamou, e muito, a minha atenção. Falo de This is America, de Childish Gambino. E Childish Gambino é Donald Glover, um jovem negro, americano, ator, roteirista, humorista, músico e sei lá mais o que, o cara é genial. 

Sim, sim, sei que não precismos de um americano pra colocar em relevo questões sobre violência, ódio, racismo e etc. Temos isto tudo retratado por ótimos artistas e produções made in Brasil. Sim, sim, sei que o racismo no Brasil tem suas particularidades, a situação não é idêntica à estadunidense. Aliás, por aqui há quem seja cínico ou ingênuo o suficiente pra declarar que não há racismo em nosso país e que, apesar de uma Virgínia Bicudo e um Florestan Fernandes (e do que nós negros experienciamos cotidianamente), vivemos sim em uma democracia racial. Há círculos nos quais falar sobre racismo soa praticamente como ingratidão, afinal teve aquela branca tão bondosa que nos libertou da escravidão, não é mesmo? 

Bom, e sinto também uma voz que ecoa lá de longe, um tal de Adorno e um certo Horkheimer, que me censuram por me empolgar tanto com um produto da industria cultural que a critique, que isto não passa de mistificação das massas, etc, etc. Mas deixando estas vozes ranzinzas de lado, fato é que apesar da situação política e dos negros no Brasil não ser idêntica à dos Estados Unidos, há muitas semelhanças e certa continuidade. This is America fala de todas as Americas. Não apenas da questão negra, mas do ódio e também da obscura relação entre mídia, industria do entretenimento e verdade. E dessa relação nós, brasileiros, que sob um golpe de Estado seguimos a vida como se tudo estivesse no seu devido lugar, vivenciamos bem as consequências... 

Assista o videoclip uma vez. Passado o choque (que não deixa de fazer com que os quadris se movimentem, a música é boa), veja mais uma vez, olhe para aquilo que não está em primeiro plano. Viu?

    

E veja este vídeo interessantíssimo do canal Meteoro que esmiúça algo do que está acontecendo nesta obra de arte:



domingo, 6 de maio de 2018

Uma história verídica

Hoje aconteceu uma coisa curiosa: enquanto eu assistia Eu não sou um homem fácil, meu marido, ao invés de ficar quieto lavando louça, ia e vinha da cozinha, atormentando-me. Tudo que eu queria era sossego pra assistir um filme, no máximo que ele me trouxesse uma cerveja, é, seria bacana, mas ele ia e vinha reclamando: "você viu que esse pão que você comprou estragou e vou ter de jogar fora?", "custa colocar a louça dentro da pia?" "mas que bagunça você faz!" ,"esse iogurte vence hoje, vou ter de jogar fora" "esse pepino que você comprou estragou, vou ter de jogar fora", "mi mi mi", "mi mi mi"... Como eu o ignorava, ficou ainda mais nervoso, mais lamuriento e por fim resolveu me dar um belo castigo: estou proibida de ir ao mercado pois compro besteiras e coisas que deixo estragar. Vejam bem, meu castigo é: ao invés de passar parte da manhã de domingo num supermercado, ficar em casa fazendo o que eu bem entender. Inclusive assistir, sossegada, a um ótimo filme.


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

 A Formação do analista à partir do Fórum <> Escola[1]

No próximo mês, a "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola"[2] de Lacan completa 50 anos.  Por este motivo, a CLEAG (Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia, uma das instâncias da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano) propôs para o Espaço Escola do Encontro Nacional deste ano que os Fóruns conversassem sobre este texto, para que um representante pudesse levar algo dessas discussões a partir dos eixos: Escola <> Passe; Escola <> Cartel; Escola <> Fórum. Este foi o start para que as atuais coordenadora e delegada do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso DO SUL se propusessem a fazer hoje esta fala, pensando a "Proposição" a partir do eixo Escola <> Fórum.   

Para começar preciso passar minimamente por nossa sopa de letrinhas[3]. São muitas instâncias, dispositivos e siglas que compõe a estrutura que denominamos "Campo Lacaniano". Mas acreditem, este mosaico ou esta sopa de letras, pura neblina num primeiro contato, vai se dissipando na medida em que se os experimenta. Digo isto justamente a partir de minha experiência enquanto membro de Fórum e membro de Escola.  

Os Fóruns do Campo Lacaniano... a criação de uma instância internacional que congrega Fóruns de vários países, a Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano, ou IF-EPFCL, veio em resposta, saída, ou solução à crise e ruptura de alguns (vários) com a Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Tal crise ficou conhecida como “A cisão de 98”. Então temos a Internacional dos Fóruns e, no Brasil, uma Associação Nacional, cujo nome fantasia (e que provoca mesmo muitas fantasias) é EPFCL-Brasil (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano). A Associação é o Fórum local e os Fóruns regionais, como o nosso no caso, ou São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Aracajú, Joinville, Curitiba, etc, etc..., ligam-se à Associação, que é quem dá suporte financeiro e jurídico à Escola. 

Ser membro de Fórum não é o mesmo que ser membro de Escola e, bem, não vou tratar aqui das exceções (É claro que elas existem! Que bom!), mas posso dizer que a entrada em um Fórum é um primeiro passo em direção à Escola. Os Fóruns congregam todos aqueles, incluindo psicanalistas, mas não apenas, que, de alguma forma, estão concernidos pelo discurso psicanalítico e que estão dispostos a, a seu modo, trabalhar para sustentar tal discurso na civilização.  Dito com Vera Iaconelli, lugar daqueles que tomam para si "as questões sobre a formação, a transmissão e o fim da análise", questões estas que impregnam "todo o campo do Fórum"[4]

Falar do laço entre Fórum e Escola implica falar da formação do psicanalista. Parto de uma questão: o que é que se ganha sendo membro de um Fórum do Campo Lacaniano? Qual a vantagem?  Imersos na lógica capitalista que estamos, lógica tal que reduz os objetos de desejo a mercadorias a serem consumidas e descartadas, nesta lógica a pergunta não está fora de contexto. Mas a resposta talvez sim: Trabalho. Lacan, no "Ato de Fundação"[5], em 1964 (e gosto de ler a "Proposição" como texto em continuidade com o "Ato"), define sua Escola como um organismo de trabalho. O que se ganha sendo membro de Fórum e, de modo geral, posteriormente, mas não necessariamente, membro de Escola, é trabalho... Trabalho causado pela psicanálise, trabalho no sentido de restaurar a relha cortante da verdade psicanalítica, instituída por Freud; trabalho no sentido de garantir que a práxis, vejam bem, PRÁXIS, original que Freud inaugurou sob o nome de psicanálise cumpra "o dever que lhe compete em nosso mundo", cabendo aí a crítica assídua que denuncie os desvios e concessões que poderiam amortecer o progresso e degradar o emprego da psicanálise (LACAN, 2003, p. 235).

, tá, tá, sopa de letrinhas, trabalho, práxis... Mas e a formação? Bem, desde sempre, quero dizer, desde Freud, a formação do psicanalista se dá a partir do já famoso tripé: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão.  Em relação à Escola de Lacan, a formação foge ao padrão, ao padrão universitário, dos cursos, do diploma, da carteirinha, de um tempo previamente estipulado. A garantia de analista não passa por aí. Tão pouco passa por um mestre que autorizaria o sujeito, que lhe diria "vá, você está pronto, la garantia soy jo!". Não. E isto pode causar confusão, decepção. "Como assim, eu entro nesta biroska, ganho com isso trabalho e nenhum curso intensivo que garanta que em tantas lições serei psicanalista? E a análise, me diga aí, quanto tempo tenho de fazer, 5, 7, 20 anos?" Ah, o que posso dizer? Como medir o tempo de assunção do sujeito do inconsciente, que é lógico e não cronológico? Por que não permitir que cada um trilhe o caminho aberto por Freud e tire disso as consequências que convém ao fazer psicanalítico?  

Com a ajuda de Dominique Fingermann sustento a ideia de que a formação do psicanalista e o futuro da psicanálise depende de uma intranquilidade, um desconforto, um desassossego. É esta intranquilidade que nos impulsiona, aos analistas, a criar dispositivos que não reduzam a psicanálise à “mera técnica desfalcada de sua orientação ética”[6]. Cito-a:

"... não se pode responder à questão da formação do analista com preceitos, cartilhas e programas, estabelecidos como sabemos com as melhores das intenções [...] as propostas de formação de analistas coerentes com o ensino de Lacan não se dedicam a promover um 'ensino' da psicanálise nem a responder às demandas de formação de psicanalista: não se trata de formar ou formatar analistas, mas de propor um campo de experiência e de interlocução no qual estará à prova o desejo de analista, ou seja, a deformação que as análises pessoais teriam eventualmente produzido [...] é na escola do inconsciente que o analista se transforma, não na escola dos professores."


"Ah tah, trilhar o caminho aberto por Freud, fazer análise, supervisão, estudar a teoria, isso tudo eu posso fazer muito bem prescindindo de Fórum, Escola, e toda essa complicação. Se ‘é na escola do inconsciente que o analista se transforma e não na escola dos professores’, por que a Escola?" Gente, pergunta difícil! Proponho uma resposta furada, não-toda. E para isto, recorro à aniversariante do mês que vem, a “Proposição”. Ali Lacan estabelece um princípio: “o psicanalista só se autoriza por si mesmo” (e esta afirmação é suscetível a todo tipo de equívoco. Autorizar-se por si mesmo não tem a ver com um Eu que se auto-afirma “sou psicanalista, u-hu”. Na verdade, será psicanalista aquele que, prescindindo da autorização do Outro, autorizou-se ao ato analítico, e isto é apreendido à posteriori, uma vez que o ato não é calculado pelo Eu). Mas tá, “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”, mas, sigo com Lacan, “isto não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação. E o analista pode querer essa garantia. ” No seminário 21, Lacan retoma isto de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo e acrescenta: ... "e por alguns outros". Quer dizer, por seus pares.

Quanto à Escola, costumamos nos referir a ela como refúgio do mal-estar na civilização. Quinet a situa como a “estranha” na civilização. Gosto também de uma definição que ouvi de Silvana Pessoa[7], da Escola como um lugar onde as pequenas Antígonas que são os analistas podem se encontrar. E acho excelente quando Dominique Fingermann se refere à ela como campo de experiência e de interlocução. Advertida quanto à solidão do ato analítico, sustento que a escolha por fazer parte de uma comunidade de trabalho pode amenizar tal solidão.

Isto não significa que tudo seja lindo, perfeito e harmônico dentro de uma comunidade de analistas. Não.  "... a Escola não é apenas local de bem-estar, já que acolhe o mal-estar da civilização - seu rebotalho, o objeto a – para que haja chance de o discurso do analista aí ocupar um lugar na circulação dos discursos."[8] Não é do paraíso na terra que se trata. As crises e rupturas estão inscritas na história do movimento psicanalítico. Nos Fóruns e na Escola, o laço deve se dar em torno da causa analítica, movimentado pelas transferências de trabalho. O que, é claro, não excetua os laços fraternos, laços de amizade, as afinidades, mesmo porque isto é inevitável. Não estamos livres das idealizações e tão pouco do narcisismo das pequenas diferenças, que segrega em nome da coesão do grupo. Ou seja: as comunidades psicanalíticas não estão imunes aos efeitos de grupo. O que impediria, por exemplo, que analisandos que tenham o mesmo analista liguem-se entre si, identificando-se, portanto, no nível do eu ideal uns com os outros, em torno daquele colocado como ideal de eu, o analista (com toda ambivalência que pode estar presente aí, é claro) num movimento de apagamento e isolamento daqueles que não fazem parte da patota? Isto é só um exemplo, uma forma de colocar em imagem a questão, vejam como o combate à estrutura da psicologia das massas é uma constante. Afinal, ainda que alguém não se coloque na posição de mestre, chefe, líder, UM, o que seria pura impostura, este alguém pode ser alçado à esta posição por conta das transferências que suscita, e deve responder à altura. Não foi a troco de nada que Lacan propôs como base de trabalho em sua Escola o cartel.

Uma comunidade em que, como escreve Maria Anita Carneiro Ribeiro a respeito da cisão de 1998, “circulem os quatro discursos e, sobretudo, da qual o discurso analítico não esteja excluído”[9] é algo que nos desafia a todo momento. E o que posso dizer por enquanto, considerando meu percurso e experiência, é que nosso Fórum, a Associação e a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano tem respondido este desafio à altura.  






[1] Fala apresentada no Espaço Escola do FCL-MS em 16-09-2017.
[2] LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 248-264.
[3] Coisa que Andrea Rodrigues fez muito bem em Stylete Lacaniano 1.
[4] IACONELLI, V. AEscola. In:  Stylus: Revista de Psicanálise, n.34. Rio de Janeiro:  AFCL/EPFCL – Brasil, 2017, PP. 139 144. 
[5] LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235-247.
[6] FINGERMANN, D. A (de)formação do psicanalista: as condições do ato psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2016, p. 32.
[7]  Ética e desejo de analista – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino, https://lacaneando.com.br/audio/.
[8] QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 120.
[9] RIBEIRO, M.A.C. A cisão de 1998. In: Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n 137, pp. 83-89.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A Vênus despedaçada

Em Dourados, no Ágora Instituto Lacaniano e sob a condução de Claudia Wunsch, seguimos estudando A psicopatologia da vida cotidiana de Freud, texto de 1901. De modo geral os psicanalistas sabem que se deve retornar over and over à Freud: há sempre algum canto, que se apresenta como novo, a ser iluminado. No meu caso, este texto tem um sabor especial por me lembrar o quanto o inconsciente aparece nas pequenas coisas do cotidiano, está na superfície, estruturado como uma linguagem, basta que estejamos atentos.

No capítulo sobre os “Equívocos na ação”, Freud gentilmente nos conta um episódio que se deu num período em que uma de suas filhas encontrava-se doente. Em seu íntimo, Freud já a havia desenganado. Porém, na manhã em que soube “que tinha havido uma grande melhora” e que ela provavelmente sobreviveria, ao passar por um quarto de roupão e chinelos de palha, cede à um impulso repentino e atira um dos chinelos na parede, de modo a fazer cair e despedaçar-se no chão uma estátua de mármore da deusa Vênus. Sua interpretação sobre o ocorrido: “Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de gratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrificial’, como se tivesse feito uma promessa de sacrificiar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela recuperasse a saúde!”

A primeira ideia que me ocorreu foi um vago pensamento sobre o quanto a religiosidade nos antecede e compõe as coordenadas simbólicas nas quais nos inscrevemos. A noção de um ser superior que nos protege e nos pune, ainda que o chamemos Destino, é mais forte no inconsciente que qualquer consciência laica. O Freud ateu, de “Totem e Tabu” e “O futuro de uma ilusão” não se furtou a realizar um ritual de sacrifício em nome da melhora de sua filha.

A segunda ideia, uma lembrança: anos atrás o rapaz que eu namorava presenteou minha mãe com um relógio de parede. Ele queria conquistar sua afeição para que nosso namoro pudesse transcorrer sem maiores acidentes. Mas o relógio... ah, era horroroso! Fiquei envergonhada diante de tamanho mau gosto, confesso. A opinião de minha mãe não era diferente, mas, por educação, o relógio foi pendurado num lugar de destaque da casa. Pra piorar a situação, o bendito, a cada hora redonda, tocava uma música, pra nos lembrar de sua existência medonha no recinto. Num belo dia, num acesso de fúria adolescente do tipo “rebelde sem causa”, diante de uma negativa de meus pais a um pedido bobo, inusitadamente peguei a primeira coisa que vi na frente, uma chave no caso, e atirei com força para o alto. Qual não foi minha surpresa: acertei em cheio o relógio, que caiu do alto e se espatifou. A sensação foi de alívio. Minha mãe abriu um largo sorriso antes de me repreender... 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Labirinto[1].
Francina Sousa[2]

Eu é um outro – Rimbaud.  
Entrei em um labirinto, pouco iluminado. Na bagagem, alguma experiência. Para não me perder, venho produzindo um mapa tecido pela clínica e por enunciados psicanalíticos, que conduzem a textos que conduzem a outros enunciados... Tal mapa tem-me servido como fio condutor, pois, no final das contas, no percurso psicanalítico não há fio de Ariadne. No portal de entrada lia-se: “Separação, luto e perdas”. Foi por onde entrei, vestida de Mais-um, acompanhada por três pessoas. Mas logo cada uma assumiu seu caminho. Periodicamente é possível encontrar-me com elas em algum ponto deste insólito lugar, momentos que amenizam a solidão do caminhar. Ter entrado neste labirinto por este portal específico, “Separação, luto e perdas”, representa que decidimos estar enlaçadas por no máximo dois anos a um tema em comum, é o tema de nosso cartel.
Dia desses nos encontramos em uma encruzilhada e pude ler na placa que indicava o local: “Introdução ao Narcisismo, Freud”. Fomos até ali para entender melhor a constituição do Eu, este que é um outro. Esta encruzilhada me marcou de tal maneira que, quando menos espero, lá estou novamente! Nos últimos encontros partimos de um trecho escorregadio, “A negativa, Freud”, parecia um bom atalho. Mas ele nos conduziu a uma ladeira, “Comentário falado sobre a ‘Verneinung’ de Freud, Hyppolite” e antes que chegássemos ao topo, rolamos ladeira abaixo! Mais uma vez acampamos na “A negativa, Freud” e no dia seguinte cada uma continuou seu caminho.  
Carrego comigo uma bússola, também conhecida no meio psicanalítico como “tema individual de cartel”, conhece? Não sei se você já sabe, mas no cartel é assim: de três a cindo pessoas, sendo quatro a justa medida, se juntam em torno de um tema geral. Mas cada um investiga um tema de interesse próprio. O meu? Está programado em minha bússola: “separar-se dos ideais...”. Minha indagação diz respeito ao próprio processo analítico, aos meandros que permitem ao sujeito, este eterno dividido, reconhecer-se em seus ideais: Eu ideal, Ideal de Eu.  E separar-se ou, no mínimo, prescindir do lugar a que tal dupla o confina.
Em determinado momento minha bússola apontou para a gruta “Agressividade em psicanálise, Lacan”. O labirinto assume formas inesperadas, mas apesar da escuridão desta gruta, saí de lá portando um feixe de luz:
“Longe de ataca-lo [o Eu] de frente, a maiêutica analítica adota um rodeio que equivale, em suma, a induzir no sujeito uma paranoia dirigida.” (LACAN, 1948/1998, p.112)

Este trecho diz respeito à dimensão do imaginário e seu manejo na clínica. Um princípio básico: a abstenção do analista em responder em qualquer plano de conselho ou projeto pressupõe uma estratégia de não ataque frontal ao Eu do sujeito que busca uma análise. Delineia o lugar de engano e o parentesco do Eu com a loucura. No plano imaginário da transferência, o sujeito pode localizar no analista as sucessivas identificações que o formam e armar-se em oposição a elas. Pois se o que sou Eu está no outro (pequeno outro) então como posso Eu existir? A ameaça de aniquilação torna-se iminente! Estaria aí o analista situado na posição de eu ideal? Ainda na gruta “Agressividade...”, Lacan contou-me de uma paciente histérica, que há meses resistia a qualquer tentativa de sugestão terapêutica. Lacan viu a personagem que representava para esta paciente identificada aos traços desagradáveis do homem pelo qual estava apaixonada, paixão esta colorida pelo delírio (e como uma histérica apaixonada delira!); quanto à neurose obsessiva, Lacan faz aí alusão às fortificações ao estilo de Vauban. Bom, imagine um castelo cercado por um fosso, cheio de jacarés, cuja entrada possível se dá por uma ponte levadiça...  É possível que você tenha visto algo semelhante em algum filme ou desenho animado. Pois bem, o Eu do neurótico obsessivo é propenso a tomar a forma de tais fortificações. Haja estratégias e rodeios para alcançar o sujeito dividido que ali se esconde! A orientação de Lacan neste momento, na direção do tratamento do neurótico, é:

Evitar, através de nossa técnica, [...] que a intenção agressiva no paciente encontre o apoio de uma ideia atual de nossa pessoa, suficientemente elaborada para que possa organizar-se nas reações de oposição, denegação, ostentação e mentira que nossa experiência nos demonstra serem os modos característicos da instância do Eu no diálogo. (LACAN, 1948/1998, p.111)

Portanto a agressividade está no cerne do Eu. Há uma relação entre a agressividade na experiência analítica e algo estrutural que Lacan nomeia como imagos do corpo despedaçado. Uma das teses de Lacan é de que a agressividade seria uma tendência correlativa à identificação que forma o narcisismo, que “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo” (p. 112).
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Hieronymus Bosch – Detalhe do quadro “Jardim das delícias terrenas”, 1500-1505.

“Que negócio é esse de imagem de desmembramento corporal?” você me pergunta. Bem, não desista, tente me acompanhar. É que ao sair desta gruta caí na viela “Como Marx inventou o sintoma, Zizek” e encontrei algo bem interessante escrito por Marx:

“De certa maneira, dá-se com o homem o mesmo que com as mercadorias. Uma vez que ele não vem ao mundo nem com um espelho na mão, nem como um filósofo fichtiano para quem ‘eu sou eu’ seja suficiente, o homem se vê e se reconhece, inicialmente, nos outros homens. Pedro só estabelece sua própria identidade como homem depois de se comparar com Paulo como sendo da mesma espécie. E com isso, Paulo, simplesmente ao se postar em sua personalidade paulina, transforma-se para Pedro no exemplar típico do gênero homo.” (ZIZEK, 1996, p.308-309) [grifo nosso]

Sim, o homem não vem com um espelho na mão... Vou te contar, aquilo me soou muito familiar, “coisa de Lacan”. “Deve ser por conta da influência de Hegel no pensamento de ambos, Marx e Lacan”, pensei, e prontamente Zizek completou:

“essa breve nota antecipa, de certa maneira, a teoria lacaniana do estádio do espelho: somente ao se refletir num outro ser humano – isto é, na medida em que esse outro ser humano lhe oferece uma imagem de sua unidade – é que o eu [moi] pode chegar à sua auto-identitidade; a identidade e a alienação, por conseguinte, são estritamente correlatas.” (p.309)

Pois vamos lá: tente, por um instante, olhar para seu próprio corpo. Percebe o quanto é impossível ter uma apreensão total de si mesmo sem um elemento mediador? Ok, você vê braços, pernas, a barriga... e a nuca? O rosto? Este é, ao nosso olhar, permanentemente inacessível, a não ser como imagem refletida. Narciso que o diga! Em resumo: vemo-nos aos pedaços. Venha comigo, vamos voltar àquela encruzilhada:

“uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas os instintos autoeróticos são primordiais; então deve haver algo que se acrescenta ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo.” (Freud, 1914/2010, p. 18-19)

Este momento, que marca um antes e um depois, sendo o Eu, ou a noção de uma totalidade corporal, o que viria depois, é designado por Freud como narcisismo primário. Esta “nova ação psíquica” não é uma pedra, mas está no meio do caminho entre o autoerostismo e o amor de objeto e articula-se ao outro, ou melhor, à imagem do outro. A beleza (e o inferno!) disso tudo é que em princípio é necessário conhecer o outro para nele reconhecer-se como Eu. Estádio do espelho com Lacan, acontecimento que pode produzir-se a partir dos seis meses de idade e que pode ser compreendido como uma identificação, “no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97).
Segundo Lacan, o infans tem uma imagem fragmentada do corpo, vê-se aos pedaços e isto tem consequências. Ainda vivenciando estas fantasias de um corpo despedaçado, fragmentado, encontra sua unidade a partir da imagem do outro. A análise demonstra esta hipótese quando se reflete “no fundo das fixações mais arcaicas” (LACAN, 1948/1998, p. 108), hipótese que se mostra “regularmente nos sonhos, quando o movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo” (LACAN, 1949/1998, p.100). É o que Bosch dá a ver com sua arte. Há neste drama (que necessita do olhar do Outro para efetivar-se), uma antecipação do psíquico sobre o fisiológico. Voltando para a encruzilhada, com Freud é possível dizer que o Eu é o primeiro objeto da pulsão, tornando-se o reservatório da libido:
Formamos assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam (1914/2010, p.17)
 Funda-se primeiro o objeto e depois o sujeito? Ou o falasser funda-se a partir de uma divisão que o coloca a um só tempo como sujeito e objeto da pulsão libidinal? O que você me diz?
Estou te deixando perdido? Sim, sim, são os efeitos de se estar em um labirinto, não se preocupe. Não te contei a princípio, mas trouxe na bagagem uma lanterna que sempre me ajuda quando o assunto é psicanálise: Dostoievski. Veja, em “Memórias do Subsolo” o narrador-personagem, que representa muito bem um neurótico obsessivo, derrama todo seu narcisismo diante do leitor, verdadeira lição sobre o Eu e seus ideais. Através desta obra é possível perceber, nas batalhas mentais travadas pelo narrador com seus semelhantes, o fundamento paranoico do Eu, a bipolaridade que Eu e Eu Ideal encenam e o assujeitamento em relação ao Ideal de Eu (essa espécie de régua formada pelos significantes recalcados que constituíram a imagem primordial do sujeito, e pela qual ele se mede). “O Ideal do eu é o ponto de onde eu me vejo como amável” (QUINET, 2012, p.25). “Mas como é que pode”, você me pergunta, “o sujeito ser assim, tão marcado pelo significante antes mesmo de ter domínio sobre a linguagem?” Bem, é uma boa pergunta! Que me remete à seguinte ideia: o sentido (o significado a significar o significante) vem depois, à posteriori. E, independentes do sentido, os significantes primordiais insistem...
E eu te pergunto: aquilo que amamos/odiamos/invejamos/desprezamos em nosso semelhante expressa coordenadas infligidas por nosso narcisismo? Narcisismo este que nos impõe um Ideal de Eu impossível de se realizar? Eu diria que... que pena! O cartel responsável por esta edição de Stylete Lacaniano está aqui, no meu ouvido, avisando: o espaço acabou. Tenho de deixar-te agora. Quem sabe nos encontramos em outra encruzilhada? Afinal, ainda tenho um bom caminho a percorrer até a saída deste labirinto.

FREUD, S. (1914) “Introdução ao Narcismo”. In: Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DOISTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo. Tradução de Bóris Schnaiderman. São Paulo: Ed.34, 2000. 
LACAN, J. (1948) “A agressividade em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1949) “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ZIZEK, S. “Como Marx inventou o sintoma”. In: Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.



[1] Artigo publicado em Stylete Lacaniano nº6 – www.stylete.com.br
[2] Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano IF-EPFCL, EPFCL-Brasil/Fórum MS, membro do Ágora Instituto Lacaniano - MS. Psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.   

quinta-feira, 7 de maio de 2015




Amor sem sexo – Algumas considerações sobre transferência e desejo do analista.
Francina Sousa.

O título deste pequeno escrito faz equívoco com o tema do XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, Amor e Sexos, ocorrido em novembro de 2014 em Campo Grande – MS. Afinal, o analista sabe: o romance psicanalítico, a aparente parceria aí instituída, é sui generis. Amor e desejo estão envolvidos. Amor de transferência, desejo do analista. O primeiro termo, se correspondido, mina as possibilidades daquele que ali se apresenta como objeto de Outro advir como sujeito de seu desejo. O segundo termo, desejo do analista, refere-se à um desejo novo, produto da destituição subjetiva inerente ao final de análise. Partindo da investigação do conceito de transferência em minha experiência de cartel, impôs-se à mim a necessidade de entender melhor aquilo que apresentou-se como contrapartida: o desejo do psicanalista. É em torno destes dois conceitos, que tomo sob o ângulo de minhas questões, sem portanto pretender esgotá-los, que faço aqui minhas considerações. Sinuosas, marcadas por avanços, recuos, rodeios... Em outras palavras, considerações “guiadas por alguma bússola que se cria a partir de uma experiência” (LACAN, 1992, p.72).
Para que a entrada em análise ocorra, o candidato à analisante deve amar, ou melhor, tornar-se um amante. Amante cujo amor é endereçado ao saber sobre si, objeto precioso que será atribuído ao analista. É necessária uma transformação: onde era queixa, que advenha a questão! Do não quero saber nada disto que me faz ser quem sou, posição que submete o sujeito, tal qual o Édipo de Sófocles, aos desígnios de um destino traçado pelas ações inscritos no discurso de seus ancestrais, à detetive investigativo de si mesmo, em busca da carta roubada na qual se escreve seu desejo. Aquele que chega na condição de objeto dos maus agouros da existência, vítima das sinapses que acredita determina-lo, torna-se um sujeito animado pela indagação sobre sua própria responsabilidade na desordem da qual se queixa, conforme Freud nos ensina com o caso Dora. Retificação subjetiva, substituição de um sujeito por outro, metáfora.
Metáfora? A longa introdução do seminário sobre a Transferência, no qual Lacan toma o Banquete de Platão como fio condutor, não traz a última palavra do psicanalista sobre o amor e a transferência, mas indicações valiosas. Em sua análise do discurso de Fedro, a lição que extraio é de que o amor, ou melhor, o ato de amar, implica em uma metáfora. Momento em que amado, aquele que se situa numa posição de objeto de amor, torna-se amante, termo que implica o desejo como motor. Lacan ilustra esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que busca pela primeira. Encontro que não ocorre, dada a dissimetria intrínseca ao amor, as mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura) tentando encontrar-se. Mas ali onde estava um objeto, eis que aparece um sujeito!
“É na medida em que a função do érastès, do amante, na medida em que é ele o sujeito da falta, vem no lugar, substitui a função do érôménos, o objeto amado, que se produz a significação do amor.” (LACAN, 1992, p. 47)

Amante pois ele é ativo no que tange ao dispositivo analítico, pois “só se entra em análise quando se põe seu próprio ‘não sei’ a trabalhar”(SOLER, 2011, p.5).
Amor de transferência, que amor é este? De acordo com Colette Soler, trata-se de um amor que inverte as aspirações do amor comum. Enquanto este último se dá pela via do milagre, do encontro, tykhê, e aspira ao para sempre, o amor de transferência não se produz pelo encontro e sim por necessidade, “desencadeado quase automaticamente pelo artifício do dispositivo.” Não aspira ao para sempre e sim que isto cesse. O amor de transferência “questiona sobre o seu fim. É um fato clínico que desde a entrada o analisante vise a saída, por vezes até a ideia fixa, e à medida disto que o cativa.” (1998, p.310).
Mas e o analista? Corresponde à demanda de amor que lhe é endereçada? Para sustentar o amor de transferência, aquele que ocupa a função de analista deve ter seu desejo situado em um ponto que não se confunde com os sentimentos que a situação analítica lhe suscita, deve ser “possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar as vias de fato com seu paciente, de toma-lo nos braços ou atirá-lo pela janela.” (LACAN, 1992, p.187). O analista “antes de mais nada ele banca o dejeto: faz descaridade. Isso para realizar o que a estrutura impõe, ou seja, permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, toma-lo por causa de seu desejo” (LACAN, 1993, p.32-33). O analista está no instante de sua interpretação, de seu ato.
No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan nos ensina que na “empresa comum” que chamamos de analise, analista e analisando entram cada qual com sua cota. Isto significa que há um custo para o sujeito não apenas enquanto analisante: há um custo para se ocupar a função de analista. Neste “investimento de capital da empresa comum”, ao analisante, não basta o investimento financeiro: ele deve pagar com a associação livre, definida por Colette Soler como irmã gêmea do amor de transferência (1998, p. 310). E é papel do analista sustentar e garantir espaço para que ela ocorra. O que não é tarefa para qualquer um, mas para um qualquer. Um rebotalho.
Segundo Freud, a escuta analítica pressupõe que o analista acentue os significantes ditos pelo paciente com a mesma nota, ele deve “escutar e não se preocupar em notar alguma coisa” (2010, p.150). Associação livre do lado do analisando, atenção flutuante por parte do psicanalista, regras fundamentais da psicanálise. Simples? Fácil? Sabe de nada inocente!! De um lado, analisando luta para vencer suas resistências e de fato dizer tudo o que lhe passa pela cabeça. Dizer tudo que lhe passa pela cabeça, isto não é simples. O amor de transferência o coloca ali, disposto a despir-se por meio de suas palavras, mas a resistência apoia-se na transferência e o faz opor-se ao “dizer tudo”: E se ele não gostar do que eu disser? Aliás, o que é que ele quer que eu diga? O que ele quer dizer? Quem ele pensa que eu sou?! O que ele quer que eu queira? Será que está me entendendo? Não, não está! Posições, entre outras, do analisando frente ao analista, movido pelo desejo de ser objeto de desejo do grande Outro que nele localiza.
Do outro lado, o analista consente em receber aquele material ao preço de sufocar-se enquanto eu. Sufocar-se? Angústia. Pois o praticante, guiado pela teoria, angustia-se diante da regra de abster-se de si mesmo. Tem horror ao ato posto que este aponta não apenas para o furo, para a castração do analisante, mas para sua própria castração. Porém chega o momento de sua prática em que o eu do analista deixa de estar ali e nem por isso se debate, ele se cala. A análise pessoal lhe permite e a clínica aliada à supervisão lhe ensinam a ocupar outra posição, responder de outro lugar, no qual o desejo do analista sustenta a atenção flutuante. Afinal, as exigências que o eu impõe ao iniciante em sua clínica situam-se do lado de um saber supostamente todo, quando na realidade é para as inconsistências deste saber que o analista aponta. Atuar de modo a ocupar um lugar de saber, e não de suposto saber, coloca o jogo a ser perdido.
Na relação analítica, não é apenas com a interpretação que o analista paga, ele paga “também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência” (LACAN, 1998, p. 593). Além disso, o analista deixa seu juízo de fora da partida. Ele joga como morto[1]. Esta é sua estratégia, que responde à uma política da falta-a-ser. Como nos ensinam Freud e Lacan, em sua tática ele tem maior liberdade, as jogadas possíveis, tal qual no jogo de xadrez[2], são inúmeras...  
 Entendo a clínica como teoria em ato e a teoria como saber clínico sedimentado em conceito. O que apreendi até este momento de minha experiência é que o “jamais somos iguais à nossa função” (LACAN, 1998, p.189) tem um sentido lógico, e arrisco-me a interpretá-lo: função na qual o analista se reconhece mas com a qual não se confunde. Com a qual o eu do analista não deve se confundir mas que, frente a determinadas coordenadas, insiste e coloca pontos de resistência em sua escuta. Felizmente, apesar do eu, ou seja, da dimensão imaginária estar à espreita na cena analítica, um analista vale menos pelas possíveis bobagens que possa dizer (erros táticos) que pela posição que ocupa na direção do tratamento (sua estratégia e política).

REFERÊNCIAS
FREUD, S. Recomendações ao médico que pratica psicanálise. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”): artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. O seminário livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1993.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
SOLER, C. Que final para o analista? In: A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.
SOLER, C. O tempo longo In: Wunsch 11 Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. 2011.


Francina Sousa,
Psicanalista, atual coordenadora do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul (2015-2016), membro do Ágora Instituto Lacaniano.

 Texto publicado em: http://lacaneando.com.br/amor-sem-sexo-algumas-consideracoes-sobre-transferencia-e-desejo-do-analista-2/ 





[1] Referência ao jogo de bridge.
[2] Referência ao texto de Freud “O início do tratamento”, de 1913.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Texto meu, um dos Prelúdios para o XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, que será em Campo Grande-MS neste ano.

PRELÚDIO 1:

A insustentável leveza do amor.

Francina Sousa


Prelúdio, significante definido pelo dicionário Houaiss da língua portuguesa como “ato preliminar, primeiro passo para (alguma coisa)”, entre outras definições. Trata-se aqui de Ato Preliminar para um Encontro. Em nossa língua o significante “preliminar” facilmente nos remete ao ato sexual, e é dispensável elucidar que amor e sexo nem sempre são solidários, a experiência nos ensina. Permitam-me, pois, uma pequena consideração sobre o amor, primeiro termo de nosso tema.
No começo, o verbo. Amar, do ponto de vista da sintaxe da língua portuguesa, é transitivo. Significa que ele necessita de um complemento, algo que o acompanhe direta ou indiretamente, já que seria carente de algo por natureza. O escritor intui e adverte: amar é verbo intransitivo. Não combina com complementos posto que este significante remete à completude. E não há tal coisa no Amor, ele é tão manco quanto os corações daqueles que toca. O Amor é intransitivo. Não porque encontre tudo de que necessita em si mesmo dispensando todo e qualquer acessório, mas porque os complementos não lhe bastam! Intransitivo, uma vez que não há trânsito entre os amantes, aqueles que compõem a dissonante canção Amor. Gênio responsável pela comunicação entre os seres, não um Deus, o Amor não é maiúsculo...
Aspirando à possibilidade de ser todo, o amor faz com que os amantes acreditem na existência da relação sexual e que dois podem unir-se em Um. A ficção que chamamos amor aparece justamente para nos proteger do horror da não complementariedade entre os sexos. Dois serão sempre dois, apesar do Aristófanes de Platão ter ainda ecos no imaginário ocidental. Aliás, com o mito de Aristófanes, estamos exatamente no nível que nós, modernos, interpretamos o amor. Animado por este sentimento cômico, o amante busca algo para dar ao objeto de amor e é ativo e astucioso nesta interminável busca. Amor é esta crença de que encontramos no outro, na pessoa amada, algo que nos é precioso, aquilo que nos falta, um bem do qual queremos gozar e tal bem nos desperta para o desejo. Só que “o que falta a um não é o que existe, escondido, no outro. Aí está todo o problema do amor”[1], já nos diz Lacan nas primeiras páginas do Seminário sobre a Transferência. Caetano canta o desencontro da bruta flor do querer amoroso já que “onde queres revólver, sou coqueiro/E onde queres dinheiro, sou paixão/Onde queres descanso, sou desejo/E onde sou só desejo, queres não.”
Para tornar-se um amante, para ser tocado e animado pelo amor, uma transformação faz-se necessária. Mais precisamente uma metáfora, “na medida em que aprendemos a articular a metáfora como substituição”[2]. Um sujeito deve vir em lugar de outro. Seguindo o Lacan do Seminário 8, onde era o amado (objeto), deve o amante (sujeito) advir. Lacan ilustra esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que busca pela primeira. As mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura) tentando encontrar-se.
Recorro ao “nosso” Milan Kundera[3] e sua obra maior, A Insustentável Leveza do Ser, verdadeira lição sobre o amar na modernidade, para tentar expressar o milagre inerente à significação do amor. Este livro conta a história de amor entre Tomas e Tereza. O narrador revela ao leitor o momento preciso em que Tomas cai de amor por Tereza. Até então, fora ele um celibatário decidido, que havia encontrado um equilíbrio entre seu desejo e temor das mulheres naquilo que batiza como “amizade erótica”. Ingênuo, assim como o Erixímaco do Banquete, acredita que o equilíbrio, a harmonia seria possível entre os corações. Tomas tem inúmeras amantes, não ama nenhuma delas. No entanto o homem preparado e convencido a permanecer celibatário trai-se. É nesta traição que a falta e o desejo se expressam. A crença que o suposto equilíbrio de estar com todas e nenhuma ao mesmo tempo lhe trazia desmorona no momento em que é atingido pelo amor, momento em que está diante desta mulher que mal conhece e que vê pela segunda vez.
O que permite a Tomas sair de sua posição anterior, o que teria essa mulher de tão especial? Para ser amada por um homem uma mulher deve oferecer-se como objeto causa de seu desejo, objeto a. Tereza aparece exatamente neste lugar. Imaginariamente unido a ela, Tomas sente que não sobreviveria à sua morte, como se fossem parte vital um do outro. Para ele, Tereza “não era nem amante nem esposa. Era uma criança.” Abandonada. Esta é a metáfora que representa Tereza em seu inconsciente e que funciona justamente para que ele, Tomas, metaforize-se em outro, aquele que salva e protege esta criança:

“Mais um vez ocorreu-lhe que Tereza era uma criança posta numa cesta untada com resina e abandonada ao sabor da corrente. Como deixar derivar para as águas impetuosas de um rio a cesta onde se abriga uma criança? Se a filha do faraó não tivesse retirado das águas a cesta do pequeno Moisés, não teria havido o Velho Testamento e toda a nossa civilização! No começo de tantos mitos antigos, existe sempre alguém que salva uma criança abandonada. Se Pólibo não tivesse recolhido o pequeno Édipo, Sófocles não teria escrito sua mais bela tragédia! Tomas compreendeu então que as metáforas são perigosas. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora” (p.16)

Sim. As metáforas são perigosas. O amor nasce de uma simples metáfora...


[1] LACAN, J. O Seminário, livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 46
[2] LACAN, J. Idem, p. 47.
[3] Refiro-me aqui ao Milan Kundera que “fala português”, uma vez que tomo como significante de minha análise a tradução de Tereza B. Carvalho da Fonseca da obra A Insustentável leveza do ser, e não o texto em sua língua original.