quarta-feira, 1 de junho de 2016

Labirinto[1].
Francina Sousa[2]

Eu é um outro – Rimbaud.  
Entrei em um labirinto, pouco iluminado. Na bagagem, alguma experiência. Para não me perder, venho produzindo um mapa tecido pela clínica e por enunciados psicanalíticos, que conduzem a textos que conduzem a outros enunciados... Tal mapa tem-me servido como fio condutor, pois, no final das contas, no percurso psicanalítico não há fio de Ariadne. No portal de entrada lia-se: “Separação, luto e perdas”. Foi por onde entrei, vestida de Mais-um, acompanhada por três pessoas. Mas logo cada uma assumiu seu caminho. Periodicamente é possível encontrar-me com elas em algum ponto deste insólito lugar, momentos que amenizam a solidão do caminhar. Ter entrado neste labirinto por este portal específico, “Separação, luto e perdas”, representa que decidimos estar enlaçadas por no máximo dois anos a um tema em comum, é o tema de nosso cartel.
Dia desses nos encontramos em uma encruzilhada e pude ler na placa que indicava o local: “Introdução ao Narcisismo, Freud”. Fomos até ali para entender melhor a constituição do Eu, este que é um outro. Esta encruzilhada me marcou de tal maneira que, quando menos espero, lá estou novamente! Nos últimos encontros partimos de um trecho escorregadio, “A negativa, Freud”, parecia um bom atalho. Mas ele nos conduziu a uma ladeira, “Comentário falado sobre a ‘Verneinung’ de Freud, Hyppolite” e antes que chegássemos ao topo, rolamos ladeira abaixo! Mais uma vez acampamos na “A negativa, Freud” e no dia seguinte cada uma continuou seu caminho.  
Carrego comigo uma bússola, também conhecida no meio psicanalítico como “tema individual de cartel”, conhece? Não sei se você já sabe, mas no cartel é assim: de três a cindo pessoas, sendo quatro a justa medida, se juntam em torno de um tema geral. Mas cada um investiga um tema de interesse próprio. O meu? Está programado em minha bússola: “separar-se dos ideais...”. Minha indagação diz respeito ao próprio processo analítico, aos meandros que permitem ao sujeito, este eterno dividido, reconhecer-se em seus ideais: Eu ideal, Ideal de Eu.  E separar-se ou, no mínimo, prescindir do lugar a que tal dupla o confina.
Em determinado momento minha bússola apontou para a gruta “Agressividade em psicanálise, Lacan”. O labirinto assume formas inesperadas, mas apesar da escuridão desta gruta, saí de lá portando um feixe de luz:
“Longe de ataca-lo [o Eu] de frente, a maiêutica analítica adota um rodeio que equivale, em suma, a induzir no sujeito uma paranoia dirigida.” (LACAN, 1948/1998, p.112)

Este trecho diz respeito à dimensão do imaginário e seu manejo na clínica. Um princípio básico: a abstenção do analista em responder em qualquer plano de conselho ou projeto pressupõe uma estratégia de não ataque frontal ao Eu do sujeito que busca uma análise. Delineia o lugar de engano e o parentesco do Eu com a loucura. No plano imaginário da transferência, o sujeito pode localizar no analista as sucessivas identificações que o formam e armar-se em oposição a elas. Pois se o que sou Eu está no outro (pequeno outro) então como posso Eu existir? A ameaça de aniquilação torna-se iminente! Estaria aí o analista situado na posição de eu ideal? Ainda na gruta “Agressividade...”, Lacan contou-me de uma paciente histérica, que há meses resistia a qualquer tentativa de sugestão terapêutica. Lacan viu a personagem que representava para esta paciente identificada aos traços desagradáveis do homem pelo qual estava apaixonada, paixão esta colorida pelo delírio (e como uma histérica apaixonada delira!); quanto à neurose obsessiva, Lacan faz aí alusão às fortificações ao estilo de Vauban. Bom, imagine um castelo cercado por um fosso, cheio de jacarés, cuja entrada possível se dá por uma ponte levadiça...  É possível que você tenha visto algo semelhante em algum filme ou desenho animado. Pois bem, o Eu do neurótico obsessivo é propenso a tomar a forma de tais fortificações. Haja estratégias e rodeios para alcançar o sujeito dividido que ali se esconde! A orientação de Lacan neste momento, na direção do tratamento do neurótico, é:

Evitar, através de nossa técnica, [...] que a intenção agressiva no paciente encontre o apoio de uma ideia atual de nossa pessoa, suficientemente elaborada para que possa organizar-se nas reações de oposição, denegação, ostentação e mentira que nossa experiência nos demonstra serem os modos característicos da instância do Eu no diálogo. (LACAN, 1948/1998, p.111)

Portanto a agressividade está no cerne do Eu. Há uma relação entre a agressividade na experiência analítica e algo estrutural que Lacan nomeia como imagos do corpo despedaçado. Uma das teses de Lacan é de que a agressividade seria uma tendência correlativa à identificação que forma o narcisismo, que “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo” (p. 112).
http://lounge.obviousmag.org/isso_compensa/assets_c/2015/01/bosh%20jardim%20inferno-thumb-854x646-93661.jpg
Hieronymus Bosch – Detalhe do quadro “Jardim das delícias terrenas”, 1500-1505.

“Que negócio é esse de imagem de desmembramento corporal?” você me pergunta. Bem, não desista, tente me acompanhar. É que ao sair desta gruta caí na viela “Como Marx inventou o sintoma, Zizek” e encontrei algo bem interessante escrito por Marx:

“De certa maneira, dá-se com o homem o mesmo que com as mercadorias. Uma vez que ele não vem ao mundo nem com um espelho na mão, nem como um filósofo fichtiano para quem ‘eu sou eu’ seja suficiente, o homem se vê e se reconhece, inicialmente, nos outros homens. Pedro só estabelece sua própria identidade como homem depois de se comparar com Paulo como sendo da mesma espécie. E com isso, Paulo, simplesmente ao se postar em sua personalidade paulina, transforma-se para Pedro no exemplar típico do gênero homo.” (ZIZEK, 1996, p.308-309) [grifo nosso]

Sim, o homem não vem com um espelho na mão... Vou te contar, aquilo me soou muito familiar, “coisa de Lacan”. “Deve ser por conta da influência de Hegel no pensamento de ambos, Marx e Lacan”, pensei, e prontamente Zizek completou:

“essa breve nota antecipa, de certa maneira, a teoria lacaniana do estádio do espelho: somente ao se refletir num outro ser humano – isto é, na medida em que esse outro ser humano lhe oferece uma imagem de sua unidade – é que o eu [moi] pode chegar à sua auto-identitidade; a identidade e a alienação, por conseguinte, são estritamente correlatas.” (p.309)

Pois vamos lá: tente, por um instante, olhar para seu próprio corpo. Percebe o quanto é impossível ter uma apreensão total de si mesmo sem um elemento mediador? Ok, você vê braços, pernas, a barriga... e a nuca? O rosto? Este é, ao nosso olhar, permanentemente inacessível, a não ser como imagem refletida. Narciso que o diga! Em resumo: vemo-nos aos pedaços. Venha comigo, vamos voltar àquela encruzilhada:

“uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas os instintos autoeróticos são primordiais; então deve haver algo que se acrescenta ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo.” (Freud, 1914/2010, p. 18-19)

Este momento, que marca um antes e um depois, sendo o Eu, ou a noção de uma totalidade corporal, o que viria depois, é designado por Freud como narcisismo primário. Esta “nova ação psíquica” não é uma pedra, mas está no meio do caminho entre o autoerostismo e o amor de objeto e articula-se ao outro, ou melhor, à imagem do outro. A beleza (e o inferno!) disso tudo é que em princípio é necessário conhecer o outro para nele reconhecer-se como Eu. Estádio do espelho com Lacan, acontecimento que pode produzir-se a partir dos seis meses de idade e que pode ser compreendido como uma identificação, “no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97).
Segundo Lacan, o infans tem uma imagem fragmentada do corpo, vê-se aos pedaços e isto tem consequências. Ainda vivenciando estas fantasias de um corpo despedaçado, fragmentado, encontra sua unidade a partir da imagem do outro. A análise demonstra esta hipótese quando se reflete “no fundo das fixações mais arcaicas” (LACAN, 1948/1998, p. 108), hipótese que se mostra “regularmente nos sonhos, quando o movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo” (LACAN, 1949/1998, p.100). É o que Bosch dá a ver com sua arte. Há neste drama (que necessita do olhar do Outro para efetivar-se), uma antecipação do psíquico sobre o fisiológico. Voltando para a encruzilhada, com Freud é possível dizer que o Eu é o primeiro objeto da pulsão, tornando-se o reservatório da libido:
Formamos assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam (1914/2010, p.17)
 Funda-se primeiro o objeto e depois o sujeito? Ou o falasser funda-se a partir de uma divisão que o coloca a um só tempo como sujeito e objeto da pulsão libidinal? O que você me diz?
Estou te deixando perdido? Sim, sim, são os efeitos de se estar em um labirinto, não se preocupe. Não te contei a princípio, mas trouxe na bagagem uma lanterna que sempre me ajuda quando o assunto é psicanálise: Dostoievski. Veja, em “Memórias do Subsolo” o narrador-personagem, que representa muito bem um neurótico obsessivo, derrama todo seu narcisismo diante do leitor, verdadeira lição sobre o Eu e seus ideais. Através desta obra é possível perceber, nas batalhas mentais travadas pelo narrador com seus semelhantes, o fundamento paranoico do Eu, a bipolaridade que Eu e Eu Ideal encenam e o assujeitamento em relação ao Ideal de Eu (essa espécie de régua formada pelos significantes recalcados que constituíram a imagem primordial do sujeito, e pela qual ele se mede). “O Ideal do eu é o ponto de onde eu me vejo como amável” (QUINET, 2012, p.25). “Mas como é que pode”, você me pergunta, “o sujeito ser assim, tão marcado pelo significante antes mesmo de ter domínio sobre a linguagem?” Bem, é uma boa pergunta! Que me remete à seguinte ideia: o sentido (o significado a significar o significante) vem depois, à posteriori. E, independentes do sentido, os significantes primordiais insistem...
E eu te pergunto: aquilo que amamos/odiamos/invejamos/desprezamos em nosso semelhante expressa coordenadas infligidas por nosso narcisismo? Narcisismo este que nos impõe um Ideal de Eu impossível de se realizar? Eu diria que... que pena! O cartel responsável por esta edição de Stylete Lacaniano está aqui, no meu ouvido, avisando: o espaço acabou. Tenho de deixar-te agora. Quem sabe nos encontramos em outra encruzilhada? Afinal, ainda tenho um bom caminho a percorrer até a saída deste labirinto.

FREUD, S. (1914) “Introdução ao Narcismo”. In: Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DOISTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo. Tradução de Bóris Schnaiderman. São Paulo: Ed.34, 2000. 
LACAN, J. (1948) “A agressividade em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1949) “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ZIZEK, S. “Como Marx inventou o sintoma”. In: Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.



[1] Artigo publicado em Stylete Lacaniano nº6 – www.stylete.com.br
[2] Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano IF-EPFCL, EPFCL-Brasil/Fórum MS, membro do Ágora Instituto Lacaniano - MS. Psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.   

quinta-feira, 7 de maio de 2015




Amor sem sexo – Algumas considerações sobre transferência e desejo do analista.
Francina Sousa.

O título deste pequeno escrito faz equívoco com o tema do XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, Amor e Sexos, ocorrido em novembro de 2014 em Campo Grande – MS. Afinal, o analista sabe: o romance psicanalítico, a aparente parceria aí instituída, é sui generis. Amor e desejo estão envolvidos. Amor de transferência, desejo do analista. O primeiro termo, se correspondido, mina as possibilidades daquele que ali se apresenta como objeto de Outro advir como sujeito de seu desejo. O segundo termo, desejo do analista, refere-se à um desejo novo, produto da destituição subjetiva inerente ao final de análise. Partindo da investigação do conceito de transferência em minha experiência de cartel, impôs-se à mim a necessidade de entender melhor aquilo que apresentou-se como contrapartida: o desejo do psicanalista. É em torno destes dois conceitos, que tomo sob o ângulo de minhas questões, sem portanto pretender esgotá-los, que faço aqui minhas considerações. Sinuosas, marcadas por avanços, recuos, rodeios... Em outras palavras, considerações “guiadas por alguma bússola que se cria a partir de uma experiência” (LACAN, 1992, p.72).
Para que a entrada em análise ocorra, o candidato à analisante deve amar, ou melhor, tornar-se um amante. Amante cujo amor é endereçado ao saber sobre si, objeto precioso que será atribuído ao analista. É necessária uma transformação: onde era queixa, que advenha a questão! Do não quero saber nada disto que me faz ser quem sou, posição que submete o sujeito, tal qual o Édipo de Sófocles, aos desígnios de um destino traçado pelas ações inscritos no discurso de seus ancestrais, à detetive investigativo de si mesmo, em busca da carta roubada na qual se escreve seu desejo. Aquele que chega na condição de objeto dos maus agouros da existência, vítima das sinapses que acredita determina-lo, torna-se um sujeito animado pela indagação sobre sua própria responsabilidade na desordem da qual se queixa, conforme Freud nos ensina com o caso Dora. Retificação subjetiva, substituição de um sujeito por outro, metáfora.
Metáfora? A longa introdução do seminário sobre a Transferência, no qual Lacan toma o Banquete de Platão como fio condutor, não traz a última palavra do psicanalista sobre o amor e a transferência, mas indicações valiosas. Em sua análise do discurso de Fedro, a lição que extraio é de que o amor, ou melhor, o ato de amar, implica em uma metáfora. Momento em que amado, aquele que se situa numa posição de objeto de amor, torna-se amante, termo que implica o desejo como motor. Lacan ilustra esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que busca pela primeira. Encontro que não ocorre, dada a dissimetria intrínseca ao amor, as mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura) tentando encontrar-se. Mas ali onde estava um objeto, eis que aparece um sujeito!
“É na medida em que a função do érastès, do amante, na medida em que é ele o sujeito da falta, vem no lugar, substitui a função do érôménos, o objeto amado, que se produz a significação do amor.” (LACAN, 1992, p. 47)

Amante pois ele é ativo no que tange ao dispositivo analítico, pois “só se entra em análise quando se põe seu próprio ‘não sei’ a trabalhar”(SOLER, 2011, p.5).
Amor de transferência, que amor é este? De acordo com Colette Soler, trata-se de um amor que inverte as aspirações do amor comum. Enquanto este último se dá pela via do milagre, do encontro, tykhê, e aspira ao para sempre, o amor de transferência não se produz pelo encontro e sim por necessidade, “desencadeado quase automaticamente pelo artifício do dispositivo.” Não aspira ao para sempre e sim que isto cesse. O amor de transferência “questiona sobre o seu fim. É um fato clínico que desde a entrada o analisante vise a saída, por vezes até a ideia fixa, e à medida disto que o cativa.” (1998, p.310).
Mas e o analista? Corresponde à demanda de amor que lhe é endereçada? Para sustentar o amor de transferência, aquele que ocupa a função de analista deve ter seu desejo situado em um ponto que não se confunde com os sentimentos que a situação analítica lhe suscita, deve ser “possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar as vias de fato com seu paciente, de toma-lo nos braços ou atirá-lo pela janela.” (LACAN, 1992, p.187). O analista “antes de mais nada ele banca o dejeto: faz descaridade. Isso para realizar o que a estrutura impõe, ou seja, permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, toma-lo por causa de seu desejo” (LACAN, 1993, p.32-33). O analista está no instante de sua interpretação, de seu ato.
No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan nos ensina que na “empresa comum” que chamamos de analise, analista e analisando entram cada qual com sua cota. Isto significa que há um custo para o sujeito não apenas enquanto analisante: há um custo para se ocupar a função de analista. Neste “investimento de capital da empresa comum”, ao analisante, não basta o investimento financeiro: ele deve pagar com a associação livre, definida por Colette Soler como irmã gêmea do amor de transferência (1998, p. 310). E é papel do analista sustentar e garantir espaço para que ela ocorra. O que não é tarefa para qualquer um, mas para um qualquer. Um rebotalho.
Segundo Freud, a escuta analítica pressupõe que o analista acentue os significantes ditos pelo paciente com a mesma nota, ele deve “escutar e não se preocupar em notar alguma coisa” (2010, p.150). Associação livre do lado do analisando, atenção flutuante por parte do psicanalista, regras fundamentais da psicanálise. Simples? Fácil? Sabe de nada inocente!! De um lado, analisando luta para vencer suas resistências e de fato dizer tudo o que lhe passa pela cabeça. Dizer tudo que lhe passa pela cabeça, isto não é simples. O amor de transferência o coloca ali, disposto a despir-se por meio de suas palavras, mas a resistência apoia-se na transferência e o faz opor-se ao “dizer tudo”: E se ele não gostar do que eu disser? Aliás, o que é que ele quer que eu diga? O que ele quer dizer? Quem ele pensa que eu sou?! O que ele quer que eu queira? Será que está me entendendo? Não, não está! Posições, entre outras, do analisando frente ao analista, movido pelo desejo de ser objeto de desejo do grande Outro que nele localiza.
Do outro lado, o analista consente em receber aquele material ao preço de sufocar-se enquanto eu. Sufocar-se? Angústia. Pois o praticante, guiado pela teoria, angustia-se diante da regra de abster-se de si mesmo. Tem horror ao ato posto que este aponta não apenas para o furo, para a castração do analisante, mas para sua própria castração. Porém chega o momento de sua prática em que o eu do analista deixa de estar ali e nem por isso se debate, ele se cala. A análise pessoal lhe permite e a clínica aliada à supervisão lhe ensinam a ocupar outra posição, responder de outro lugar, no qual o desejo do analista sustenta a atenção flutuante. Afinal, as exigências que o eu impõe ao iniciante em sua clínica situam-se do lado de um saber supostamente todo, quando na realidade é para as inconsistências deste saber que o analista aponta. Atuar de modo a ocupar um lugar de saber, e não de suposto saber, coloca o jogo a ser perdido.
Na relação analítica, não é apenas com a interpretação que o analista paga, ele paga “também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência” (LACAN, 1998, p. 593). Além disso, o analista deixa seu juízo de fora da partida. Ele joga como morto[1]. Esta é sua estratégia, que responde à uma política da falta-a-ser. Como nos ensinam Freud e Lacan, em sua tática ele tem maior liberdade, as jogadas possíveis, tal qual no jogo de xadrez[2], são inúmeras...  
 Entendo a clínica como teoria em ato e a teoria como saber clínico sedimentado em conceito. O que apreendi até este momento de minha experiência é que o “jamais somos iguais à nossa função” (LACAN, 1998, p.189) tem um sentido lógico, e arrisco-me a interpretá-lo: função na qual o analista se reconhece mas com a qual não se confunde. Com a qual o eu do analista não deve se confundir mas que, frente a determinadas coordenadas, insiste e coloca pontos de resistência em sua escuta. Felizmente, apesar do eu, ou seja, da dimensão imaginária estar à espreita na cena analítica, um analista vale menos pelas possíveis bobagens que possa dizer (erros táticos) que pela posição que ocupa na direção do tratamento (sua estratégia e política).

REFERÊNCIAS
FREUD, S. Recomendações ao médico que pratica psicanálise. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”): artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. O seminário livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1993.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
SOLER, C. Que final para o analista? In: A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.
SOLER, C. O tempo longo In: Wunsch 11 Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. 2011.


Francina Sousa,
Psicanalista, atual coordenadora do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul (2015-2016), membro do Ágora Instituto Lacaniano.

 Texto publicado em: http://lacaneando.com.br/amor-sem-sexo-algumas-consideracoes-sobre-transferencia-e-desejo-do-analista-2/ 





[1] Referência ao jogo de bridge.
[2] Referência ao texto de Freud “O início do tratamento”, de 1913.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Texto meu, um dos Prelúdios para o XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, que será em Campo Grande-MS neste ano.

PRELÚDIO 1:

A insustentável leveza do amor.

Francina Sousa


Prelúdio, significante definido pelo dicionário Houaiss da língua portuguesa como “ato preliminar, primeiro passo para (alguma coisa)”, entre outras definições. Trata-se aqui de Ato Preliminar para um Encontro. Em nossa língua o significante “preliminar” facilmente nos remete ao ato sexual, e é dispensável elucidar que amor e sexo nem sempre são solidários, a experiência nos ensina. Permitam-me, pois, uma pequena consideração sobre o amor, primeiro termo de nosso tema.
No começo, o verbo. Amar, do ponto de vista da sintaxe da língua portuguesa, é transitivo. Significa que ele necessita de um complemento, algo que o acompanhe direta ou indiretamente, já que seria carente de algo por natureza. O escritor intui e adverte: amar é verbo intransitivo. Não combina com complementos posto que este significante remete à completude. E não há tal coisa no Amor, ele é tão manco quanto os corações daqueles que toca. O Amor é intransitivo. Não porque encontre tudo de que necessita em si mesmo dispensando todo e qualquer acessório, mas porque os complementos não lhe bastam! Intransitivo, uma vez que não há trânsito entre os amantes, aqueles que compõem a dissonante canção Amor. Gênio responsável pela comunicação entre os seres, não um Deus, o Amor não é maiúsculo...
Aspirando à possibilidade de ser todo, o amor faz com que os amantes acreditem na existência da relação sexual e que dois podem unir-se em Um. A ficção que chamamos amor aparece justamente para nos proteger do horror da não complementariedade entre os sexos. Dois serão sempre dois, apesar do Aristófanes de Platão ter ainda ecos no imaginário ocidental. Aliás, com o mito de Aristófanes, estamos exatamente no nível que nós, modernos, interpretamos o amor. Animado por este sentimento cômico, o amante busca algo para dar ao objeto de amor e é ativo e astucioso nesta interminável busca. Amor é esta crença de que encontramos no outro, na pessoa amada, algo que nos é precioso, aquilo que nos falta, um bem do qual queremos gozar e tal bem nos desperta para o desejo. Só que “o que falta a um não é o que existe, escondido, no outro. Aí está todo o problema do amor”[1], já nos diz Lacan nas primeiras páginas do Seminário sobre a Transferência. Caetano canta o desencontro da bruta flor do querer amoroso já que “onde queres revólver, sou coqueiro/E onde queres dinheiro, sou paixão/Onde queres descanso, sou desejo/E onde sou só desejo, queres não.”
Para tornar-se um amante, para ser tocado e animado pelo amor, uma transformação faz-se necessária. Mais precisamente uma metáfora, “na medida em que aprendemos a articular a metáfora como substituição”[2]. Um sujeito deve vir em lugar de outro. Seguindo o Lacan do Seminário 8, onde era o amado (objeto), deve o amante (sujeito) advir. Lacan ilustra esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que busca pela primeira. As mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura) tentando encontrar-se.
Recorro ao “nosso” Milan Kundera[3] e sua obra maior, A Insustentável Leveza do Ser, verdadeira lição sobre o amar na modernidade, para tentar expressar o milagre inerente à significação do amor. Este livro conta a história de amor entre Tomas e Tereza. O narrador revela ao leitor o momento preciso em que Tomas cai de amor por Tereza. Até então, fora ele um celibatário decidido, que havia encontrado um equilíbrio entre seu desejo e temor das mulheres naquilo que batiza como “amizade erótica”. Ingênuo, assim como o Erixímaco do Banquete, acredita que o equilíbrio, a harmonia seria possível entre os corações. Tomas tem inúmeras amantes, não ama nenhuma delas. No entanto o homem preparado e convencido a permanecer celibatário trai-se. É nesta traição que a falta e o desejo se expressam. A crença que o suposto equilíbrio de estar com todas e nenhuma ao mesmo tempo lhe trazia desmorona no momento em que é atingido pelo amor, momento em que está diante desta mulher que mal conhece e que vê pela segunda vez.
O que permite a Tomas sair de sua posição anterior, o que teria essa mulher de tão especial? Para ser amada por um homem uma mulher deve oferecer-se como objeto causa de seu desejo, objeto a. Tereza aparece exatamente neste lugar. Imaginariamente unido a ela, Tomas sente que não sobreviveria à sua morte, como se fossem parte vital um do outro. Para ele, Tereza “não era nem amante nem esposa. Era uma criança.” Abandonada. Esta é a metáfora que representa Tereza em seu inconsciente e que funciona justamente para que ele, Tomas, metaforize-se em outro, aquele que salva e protege esta criança:

“Mais um vez ocorreu-lhe que Tereza era uma criança posta numa cesta untada com resina e abandonada ao sabor da corrente. Como deixar derivar para as águas impetuosas de um rio a cesta onde se abriga uma criança? Se a filha do faraó não tivesse retirado das águas a cesta do pequeno Moisés, não teria havido o Velho Testamento e toda a nossa civilização! No começo de tantos mitos antigos, existe sempre alguém que salva uma criança abandonada. Se Pólibo não tivesse recolhido o pequeno Édipo, Sófocles não teria escrito sua mais bela tragédia! Tomas compreendeu então que as metáforas são perigosas. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora” (p.16)

Sim. As metáforas são perigosas. O amor nasce de uma simples metáfora...


[1] LACAN, J. O Seminário, livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 46
[2] LACAN, J. Idem, p. 47.
[3] Refiro-me aqui ao Milan Kundera que “fala português”, uma vez que tomo como significante de minha análise a tradução de Tereza B. Carvalho da Fonseca da obra A Insustentável leveza do ser, e não o texto em sua língua original.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Todos caminhos levam à Roma...

Sabe quando todos os caminhos insistem em te levar para o mesmo lugar? Pois é, ultimamente quando menos espero, eis que Nietzsche cai no meu colo. Ontem à noite não foi diferente, e quando dei por mim, estava enlouquecida discorrendo e escorrendo sobre a forma nietzschiana de escrito, o tal do aforismo. Claro que não entendo nada de Nietzsche, mas na minha cabeça esse caboclo foi aquele responsável por eu ter finalmente abandonado a posição "Ivan Karamazov" ou, dito em outras palavras, a posição de alguém que se anuncia ateu mas no fundo permanece em duvida quanto à existência divina. Foi na adolescência, depois de uma martelada nietzschiana (que na minha lembrança foi mais ou menos assim: "Como?!! Seria o homem uma criação de Deus? Ou seria deus apenas uma criação do homem?") que pude tranquilizar-me quanto ao meu ateísmo, este deixou de ser uma questão. Foi disso que lembrei enquanto escorria sabichonices de botequim, enquanto animadamente defendia a ideia de que alguns escritos podem condensar um mundo e que, justamente por isso, devem ser lidos com tempo, calma... Devem, enfim, ser ruminados, afinal, as vezes um parágrafo pode "valer" mais que 20 páginas! E não é que depois, bisbilhotando o aforismo 8 da Genealogia da Moral, li algo lindo que o bigodudo escreve sobre seus aforismos e a arte de sua leitura? "A dissertação é precedida por um aforismo, do qual ela constitui o comentário. É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um 'homem moderno': o ruminar..." Considerando a pressa quantitativa de nosso tempo, esse trecho tem muito a dizer, não?
...
Sabe quando todos os caminhos insistem em te levar para o mesmo lugar? Bom, no teu caso, improvável leitor, eu não me iludiria à ponto de atribuir isto à mera coincidência. O inconsciente é mais ardiloso do que supomos... digo isso porque depois do tal aforismo 8, lembrei-me (finalmente) de ter lido há poucos dias sobre a forte impressão que a obra de Nietzsche causou no jovem Lacan e que, diz a Roudinesco, foi após ler a obra dele que o francês abandonou de vez a religião e a fé, como eu, numa provável e fabulosa reconstrução histérica, julgo ter feito anos atrás por conta de um "simples" aforismo...
31/08/2012.

terça-feira, 4 de junho de 2013

My God is the Sun

Depois de uma lição sobre desejo, 
deslizei os cabelos protegidos pelo para-brisa, 
mas não completamente impunes, 
o vento lhes fazendo justiça, 
em uma música deliciosa...
O problema é que não entendo absolutamente nada de música. Teoria musical? Já vi por aí, mas permaneço arisca. Talvez eu não consiga ver razão na música, limito-me a senti-la (e o refúgio do amante apaixonado pela música, que de música nada entende, é convencer de que a sente como ninguém!). Mas olhem só, Lacan deu uma desembaraçada em mim dia desses: ao retomar o Banquete, e nele o discurso de Eríximaco, o francês relaciona a noção de harmonia no discurso daquele à noção de acorde na música. Mas em um primeiro momento tudo que eu conseguia ler era A-C-O-R-D-E!!!!  Qual o sentido de tal equívoco? Sei , e só lá, mas sobre música penso que talvez, pra mim, ela seja isso, isso que acorda os corpos ao entrar em acordo com eles, e este acordo é subjetivo.  Pois é. No meu caso, apesar de nada saber sobre baixos, riffs e solos, quando a voz dele entra naquela música não me importa o que ele canta, e sim como ele canta, como derrete sua voz na palavra tornando-a quase líquida, dando à ela uma sinuosidade pra lá de erótica! A guitarra que atrai o corpo em suaves solavancos enquanto o baixo o lança de um lado pro outro... A bateria que faz o corpo fanático movimentar-se em  sim sim sim sim!!! ...Faltam palavras pra dizer daquilo que é pele, daquilo que é visceral, é difícil dar significado aos significantes que o corpo atua... 

segunda-feira, 11 de março de 2013

Forma... estilo...


Estava eu ruminando um texto de Freud* quando coloquei-me a acentuar mentalmente o fato de que a regra imposta ao analista de não querer notar nada em especial, e oferecer a tudo o que se ouve a mesma "atenção flutuante" é precedida, no tal texto, por um comentário que aponta, entendo eu, pra uma certa liberdade concedida ao analista na execução desta regra. Lacan, no Seminário 1, diz que a formalização [por Freud] das regras técnicas é assim tratada com uma liberdade que, por si só, é um ensinamento que poderia bastar, e isto tudo remeteu-me à uma famosa passagem em que Freud compara a análise a uma partida de xadrez, na qual apenas as aberturas e os finais são passíveis de uma sistematização, as jogadas não. Significa que a condução de uma análise não pode ser rigidamente  pré-determinada... Deixando-me levar por um certo deslizamento, veio-me à cabeça um significante recorrente no campo lacaniano: estilo do analista. É que a formação em psicanálise não se dá em série, como numa linha de produção, e não se limita ao molde universitário, logo os “produtos” de tal formação terão cada um sua singularidade (há de se considerar e muito o fato de que, seguindo Lacan, um analista não se coloca como modelo egóico a ser apreendido pelo analisando, fator importante para uma formação não serializada, não é mesmo?). Freud, ao estabelecer a atenção flutuante como regra, não o faz de forma a fixar as etapas que devem ser seguidas para que tal objetivo seja atingido (assim como não engessa as etapas a serem seguidas por um analista em sua clínica), apenas orienta que o analista abandone-se à memória inconsciente, afinal o Eu nessas horas só atrapalha! Lê-se em Freud a segurança de alguém que propõe-se a não selecionar o material que lhe é apresentado, a segurança de alguém que escuta de maneira flutuante as associações livres de seus analisandos, e sabemos, isto não é tão simples quanto pode parecer: assim como, do lado do analisando, a crítica consciente e a resistência impõe-se o tempo todo contra a associação livre, do lado do analista, há o perigo do Eu ardilosamente querer se intrometer, e sabemos com Lacan que o analista, ao ocupar este lugar, paga com interpretações e com sua pessoa, uma vez que pela transferência ele é literalmente despossuído dela! Daí, mais uma vez (sei sei, sou repetitiva) a importância da análise pessoal do analista, afinal como escutar o inconsciente de alguém quando não se sabe nada sobre seu próprio? Se o Eu do analista não está em questão (em outro lugar), como poderá ele desmontar as certezas imaginárias do analisando e fazê-lo avançar?

*Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise. 

domingo, 10 de março de 2013

(Mais um) Pequeno comentário acerca da Abertura do Seminário 1 de Lacan (ou da tentativa de responder à pergunta: “Se Lacan era tão freudiano, porque não ler apenas Freud?”)

Lacan inicia seu Seminário 1 com um dito sobre a técnica zen. Considerando que tal Seminário aborda os chamados “escritos técnicos de Freud”, penso ser importante um olhar atento a esta passagem. Que teria a psicanálise a ver com a técnica zen? Aqui, neste trecho tão curto, Lacan já nos indica o que veio anunciar. Sobre o mestre budista, a lição é que este “não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la”. Em outras palavras, o mestre conduz seus discípulos pelo percurso que os leva à resposta. Mas o estilo de Lacan, que poderia talvez condensar-se sob o significante enigmático[1], nos convida ao jogo da decifração. Joguemo-lo. Lacan se alinha a tal perspectiva técnica na medida em que sua transmissão situa o leitor-ouvinte na posição de sujeito produtor de saber e não de um objeto passivo que absorveria o saber pronto e acabado do mestre. Aqui ele dá o tom de seus Seminários: difíceis, irônicos, truncados, faltosos, instigantes...
Mas Lacan não é mestre. A técnica zen, diz ele, possui um limite: mantém o dogma intacto. O mestre zen já possui a resposta (ela é sempre a mesma), apenas aguarda, pacientemente, que seu discípulo esteja preparado para ouvi-la. Mas e Lacan então, o que pretende com seus seminários? Aqui, a princípio, retornar a Freud naquilo que a psicanálise tem de constitutivo, seu vir-a-ser, sua essência não dogmática.
Neste ponto Lacan rompe com qualquer possibilidade de similitude entre o budismo e a psicanálise, ainda que faça uma aproximação, no campo da técnica, entre ambos. Ao contrário do pensamento budista, “o pensamento de Freud é o mais perpetuamente [destaque meu] aberto à revisão. É um erro reduzi-lo à palavras gastas. Nele cada noção possui vida própria.” A técnica psicanalítica não conduz à confirmação de sua identidade teórica, mas à sua negação dialética, modificando-a, ao mesmo tempo que a mantém. Entendo que é na relação entre prática e teoria, na práxis psicanalítica, que os significantes teóricos acomodam significados práticos. É o que nos diz Freud na primeira parte de sua Introdução ao Narcisismo, de 1914 e logo no início de seu Pulsões e destinos das pulsões, de 1915, por exemplo.
Aqui o retorno à Freud é, primeiramente, mas não apenas, o retorno à abertura da teoria à técnica. A técnica seria de tal modo não apenas um meio de aplicação teórica, mas ela própria um motor dinâmico da teoria. Neste sentido o psicanalista não deve, tal qual Procusto, que no horripilante mito cortava os membros de seus hóspedes de modo a fazer com que coubessem na cama que lhes oferecia, cortar qualquer indicativo prático que questione a teoria, moldando de forma acrítica sua experiência a um padrão teórico pré-estabelecido. A clínica deve interrogar a teoria.
Do ponto de vista histórico é bom lembrar que este primeiro seminário publicado de Lacan (1953-54) é expressão de sua denuncia do engessamento técnico e teórico pós-freudiano. Lacan nos ensina que revisar o pensamento de Freud é próprio da psicanálise e tal empreendimento deve ser feito por todo aquele que se pretende psicanalista. Lacan era freudiano. Caberia a nós, segundo ele, a alcunha “lacaniano”. Pois então o trabalho é grande: empreender não apenas o retorno à letra de Freud, mas também retornar ao ensino de Lacan como uma das condições necessárias para manter viva a práxis psicanalítica e o campo aberto por Freud.

Em tempo, agradeço a colaboração e interlocução de Marisa de Costa neste escrito.