Amor
sem sexo – Algumas considerações sobre transferência e desejo do analista.
Francina Sousa.
O título deste pequeno escrito faz equívoco com o
tema do XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
Lacaniano Brasil, Amor e Sexos, ocorrido
em novembro de 2014 em Campo Grande – MS. Afinal, o analista sabe: o romance
psicanalítico, a aparente parceria aí instituída, é sui generis. Amor e desejo estão envolvidos. Amor de transferência,
desejo do analista. O primeiro termo, se correspondido, mina as possibilidades
daquele que ali se apresenta como objeto de Outro advir como sujeito de seu
desejo. O segundo termo, desejo do analista, refere-se à um desejo novo,
produto da destituição subjetiva inerente ao final de análise. Partindo da
investigação do conceito de transferência em minha experiência de cartel, impôs-se
à mim a necessidade de entender melhor aquilo que apresentou-se como
contrapartida: o desejo do psicanalista. É em torno destes dois conceitos, que
tomo sob o ângulo de minhas questões, sem portanto pretender esgotá-los, que
faço aqui minhas considerações. Sinuosas, marcadas por avanços, recuos,
rodeios... Em outras palavras, considerações “guiadas por alguma bússola que se
cria a partir de uma experiência” (LACAN, 1992, p.72).
Para que a entrada em análise ocorra, o candidato à
analisante deve amar, ou melhor, tornar-se um amante. Amante cujo amor é
endereçado ao saber sobre si, objeto precioso que será atribuído ao analista. É
necessária uma transformação: onde era queixa, que advenha a questão! Do não quero saber nada disto que me faz ser
quem sou, posição que submete o sujeito, tal qual o Édipo de Sófocles, aos
desígnios de um destino traçado pelas ações inscritos no discurso de seus
ancestrais, à detetive investigativo de si mesmo, em busca da carta roubada na
qual se escreve seu desejo. Aquele que chega na condição de objeto dos maus
agouros da existência, vítima das sinapses que acredita determina-lo, torna-se
um sujeito animado pela indagação sobre sua própria responsabilidade na
desordem da qual se queixa, conforme Freud nos ensina com o caso Dora. Retificação
subjetiva, substituição de um sujeito por outro, metáfora.
Metáfora? A longa introdução do seminário sobre a
Transferência, no qual Lacan toma o Banquete
de Platão como fio condutor, não traz a última palavra do psicanalista sobre o
amor e a transferência, mas indicações valiosas. Em sua análise do discurso de
Fedro, a lição que extraio é de que o amor, ou melhor, o ato de amar, implica
em uma metáfora. Momento em que amado, aquele que se situa numa posição de objeto
de amor, torna-se amante, termo que implica o desejo como motor. Lacan ilustra
esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir
um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que
busca pela primeira. Encontro que não ocorre, dada a dissimetria intrínseca ao
amor, as mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura)
tentando encontrar-se. Mas ali onde estava um objeto, eis que aparece um
sujeito!
“É
na medida em que a função do érastès, do amante, na medida em que é ele o
sujeito da falta, vem no lugar, substitui a função do érôménos, o objeto amado,
que se produz a significação do amor.” (LACAN, 1992, p. 47)
Amante
pois ele é ativo no que tange ao dispositivo analítico, pois “só se entra em
análise quando se põe seu próprio ‘não sei’ a trabalhar”(SOLER, 2011, p.5).
Amor de transferência, que amor é este? De acordo
com Colette Soler, trata-se de um amor que inverte as aspirações do amor comum.
Enquanto este último se dá pela via do milagre, do encontro, tykhê, e aspira ao para sempre, o amor de transferência não se produz pelo encontro e
sim por necessidade, “desencadeado quase automaticamente pelo artifício do
dispositivo.” Não aspira ao para sempre
e sim que isto cesse. O amor de
transferência “questiona sobre o seu fim. É um fato clínico que desde a entrada
o analisante vise a saída, por vezes até a ideia fixa, e à medida disto que o
cativa.” (1998, p.310).
Mas e o analista? Corresponde à demanda de amor que
lhe é endereçada? Para sustentar o amor de transferência, aquele que ocupa a
função de analista deve ter seu desejo situado em um ponto que não se confunde
com os sentimentos que a situação analítica lhe suscita, deve ser “possuído por
um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de
chegar as vias de fato com seu paciente, de toma-lo nos braços ou atirá-lo pela
janela.” (LACAN, 1992, p.187). O analista “antes de mais nada ele banca o
dejeto: faz descaridade. Isso para realizar o que a estrutura impõe, ou seja,
permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, toma-lo por causa de seu
desejo” (LACAN, 1993, p.32-33). O
analista está no instante de sua interpretação, de seu ato.
No texto A
direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan nos ensina que na
“empresa comum” que chamamos de analise, analista e analisando entram cada qual
com sua cota. Isto significa que há um custo para o sujeito não apenas enquanto
analisante: há um custo para se ocupar a função de analista. Neste
“investimento de capital da empresa comum”, ao analisante, não basta o
investimento financeiro: ele deve pagar com a associação livre, definida por
Colette Soler como irmã gêmea do amor de transferência (1998, p. 310). E é papel
do analista sustentar e garantir espaço para que ela ocorra. O que não é tarefa
para qualquer um, mas para um qualquer. Um rebotalho.
Segundo Freud, a escuta analítica pressupõe que o
analista acentue os significantes ditos pelo paciente com a mesma nota, ele
deve “escutar e não se preocupar em notar alguma coisa” (2010, p.150). Associação livre do lado do
analisando, atenção flutuante por parte do psicanalista, regras fundamentais da
psicanálise. Simples? Fácil? Sabe de nada
inocente!! De um lado, analisando luta para vencer suas resistências e de fato
dizer tudo o que lhe passa pela cabeça. Dizer tudo que lhe passa pela cabeça,
isto não é simples. O amor de transferência o coloca ali, disposto a despir-se por
meio de suas palavras, mas a resistência apoia-se na transferência e o faz
opor-se ao “dizer tudo”: E se ele não
gostar do que eu disser? Aliás, o que é que ele quer que eu diga? O que ele
quer dizer? Quem ele pensa que eu sou?! O que ele quer que eu queira? Será que
está me entendendo? Não, não está! Posições, entre outras, do analisando
frente ao analista, movido pelo desejo de ser objeto de desejo do grande Outro
que nele localiza.
Do outro lado, o analista consente em receber aquele
material ao preço de sufocar-se enquanto eu. Sufocar-se? Angústia. Pois o praticante,
guiado pela teoria, angustia-se diante da regra de abster-se de si mesmo. Tem
horror ao ato posto que este aponta não apenas para o furo, para a castração do
analisante, mas para sua própria castração. Porém chega o momento de sua
prática em que o eu do analista deixa
de estar ali e nem por isso se debate, ele se cala. A análise pessoal lhe
permite e a clínica aliada à supervisão lhe ensinam a ocupar outra posição,
responder de outro lugar, no qual o desejo do analista sustenta a atenção
flutuante. Afinal, as exigências que o eu
impõe ao iniciante em sua clínica situam-se do lado de um saber supostamente
todo, quando na realidade é para as inconsistências deste saber que o analista
aponta. Atuar de modo a ocupar um lugar de saber, e não de suposto saber, coloca
o jogo a ser perdido.
Na relação analítica, não é apenas com a
interpretação que o analista paga, ele paga “também com sua pessoa, na medida
em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares
que a análise descobriu na transferência” (LACAN, 1998, p. 593). Além disso, o
analista deixa seu juízo de fora da partida. Ele joga como morto[1].
Esta é sua estratégia, que responde à uma política da falta-a-ser. Como nos
ensinam Freud e Lacan, em sua tática ele tem maior liberdade, as jogadas
possíveis, tal qual no jogo de xadrez[2],
são inúmeras...
Entendo a
clínica como teoria em ato e a teoria como saber clínico sedimentado em
conceito. O que apreendi até este momento de minha experiência é que o “jamais
somos iguais à nossa função” (LACAN, 1998, p.189) tem um sentido lógico, e arrisco-me
a interpretá-lo: função na qual o analista se reconhece mas com a qual não se
confunde. Com a qual o eu do analista
não deve se confundir mas que, frente a determinadas coordenadas, insiste e
coloca pontos de resistência em sua escuta. Felizmente, apesar do eu, ou seja, da dimensão imaginária
estar à espreita na cena analítica, um analista vale menos pelas possíveis bobagens
que possa dizer (erros táticos) que pela posição que ocupa na direção do
tratamento (sua estratégia e política).
REFERÊNCIAS
FREUD,
S. Recomendações ao médico que pratica psicanálise. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em
autobiografia (“O caso Schreber”): artigos sobre a técnica e outros textos
(1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN,
J. O seminário livro 8 – A transferência.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN,
J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed.,1993.
LACAN,
J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
SOLER,
C. Que final para o analista? In: A
psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.
SOLER,
C. O tempo longo In: Wunsch 11 Boletim
Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. 2011.
Francina
Sousa,
Psicanalista,
atual coordenadora do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul
(2015-2016), membro do Ágora Instituto Lacaniano.