Lacan inicia seu Seminário 1 com um dito sobre a técnica zen.
Considerando que tal Seminário aborda os chamados “escritos técnicos de Freud”,
penso ser importante um olhar atento a esta passagem. Que teria a psicanálise a
ver com a técnica zen? Aqui, neste
trecho tão curto, Lacan já nos indica o que veio anunciar. Sobre o mestre
budista, a lição é que este “não ensina ex-cathedra uma
ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de
encontrá-la”. Em outras palavras, o mestre conduz seus discípulos pelo percurso
que os leva à resposta. Mas o estilo de Lacan, que poderia talvez condensar-se
sob o significante enigmático[1],
nos convida ao jogo da decifração.
Joguemo-lo. Lacan se alinha a tal perspectiva técnica na medida em que sua
transmissão situa o leitor-ouvinte na posição de sujeito produtor de saber e
não de um objeto passivo que absorveria o saber pronto e acabado do mestre.
Aqui ele dá o tom de seus Seminários: difíceis, irônicos, truncados, faltosos,
instigantes...
Mas Lacan não é mestre. A técnica zen, diz ele, possui um limite:
mantém o dogma intacto. O mestre zen já possui a resposta (ela é sempre a
mesma), apenas aguarda, pacientemente, que seu discípulo esteja preparado para ouvi-la. Mas e
Lacan então, o que pretende com seus seminários? Aqui, a princípio, retornar a
Freud naquilo que a psicanálise tem de constitutivo, seu vir-a-ser, sua
essência não dogmática.
Neste ponto Lacan rompe com
qualquer possibilidade de similitude entre o budismo e a psicanálise, ainda que
faça uma aproximação, no campo da técnica, entre ambos. Ao contrário do
pensamento budista, “o pensamento de Freud é o mais perpetuamente [destaque meu] aberto à revisão. É um erro reduzi-lo
à palavras gastas. Nele cada noção possui vida própria.” A técnica
psicanalítica não conduz à confirmação de sua identidade teórica, mas à sua
negação dialética, modificando-a, ao mesmo tempo que a mantém. Entendo que é na relação entre prática e teoria, na práxis
psicanalítica, que os significantes teóricos acomodam significados práticos. É o
que nos diz Freud na primeira parte de sua Introdução
ao Narcisismo, de 1914 e logo no início de seu Pulsões e destinos das pulsões, de 1915, por exemplo.
Aqui o retorno
à Freud é, primeiramente, mas não apenas, o retorno à abertura da teoria à
técnica. A técnica seria de tal modo não apenas um meio de aplicação teórica, mas
ela própria um motor dinâmico da teoria. Neste sentido o psicanalista não deve,
tal qual Procusto, que no horripilante mito cortava os membros de seus hóspedes
de modo a fazer com que coubessem na cama que lhes oferecia, cortar qualquer
indicativo prático que questione a teoria, moldando de forma acrítica sua
experiência a um padrão teórico pré-estabelecido. A clínica deve interrogar a
teoria.

Do ponto de
vista histórico é bom lembrar que este primeiro seminário publicado de Lacan
(1953-54) é expressão de sua denuncia do engessamento técnico
e teórico pós-freudiano. Lacan nos ensina que revisar o pensamento de Freud é
próprio da psicanálise e tal empreendimento deve ser feito por todo aquele que
se pretende psicanalista. Lacan era freudiano. Caberia a nós, segundo ele, a
alcunha “lacaniano”. Pois então o trabalho é grande: empreender não apenas o
retorno à letra de Freud, mas também retornar ao ensino de Lacan como uma das
condições necessárias para manter viva a práxis psicanalítica e o campo aberto
por Freud.
Em tempo, agradeço a colaboração e interlocução de Marisa de Costa neste escrito.