Labirinto[1].
Francina
Sousa[2]
Eu é um outro – Rimbaud.
Entrei em um
labirinto, pouco iluminado. Na bagagem, alguma experiência. Para não me perder,
venho produzindo um mapa tecido pela clínica e por enunciados psicanalíticos,
que conduzem a textos que conduzem a outros enunciados... Tal mapa tem-me
servido como fio condutor, pois, no final das contas, no percurso psicanalítico
não há fio de Ariadne. No portal de entrada lia-se: “Separação, luto e perdas”.
Foi por onde entrei, vestida de Mais-um, acompanhada por três pessoas. Mas logo
cada uma assumiu seu caminho. Periodicamente é possível encontrar-me com elas em
algum ponto deste insólito lugar, momentos que amenizam a solidão do caminhar. Ter
entrado neste labirinto por este portal específico, “Separação, luto e perdas”,
representa que decidimos estar enlaçadas por no máximo dois anos a um tema em
comum, é o tema de nosso cartel.
Dia desses nos
encontramos em uma encruzilhada e pude ler na placa que indicava o local:
“Introdução ao Narcisismo, Freud”. Fomos até ali para entender melhor a
constituição do Eu, este que é um outro. Esta encruzilhada me marcou de tal
maneira que, quando menos espero, lá estou novamente! Nos últimos encontros
partimos de um trecho escorregadio, “A negativa, Freud”, parecia um bom atalho.
Mas ele nos conduziu a uma ladeira, “Comentário falado sobre a ‘Verneinung’ de
Freud, Hyppolite” e antes que chegássemos ao topo, rolamos ladeira abaixo! Mais
uma vez acampamos na “A negativa, Freud” e no dia seguinte cada uma continuou
seu caminho.
Carrego comigo uma
bússola, também conhecida no meio psicanalítico como “tema individual de
cartel”, conhece? Não sei se você já sabe, mas no cartel é assim: de três a cindo
pessoas, sendo quatro a justa medida, se juntam em torno de um tema geral. Mas
cada um investiga um tema de interesse próprio. O meu? Está programado em minha
bússola: “separar-se dos ideais...”. Minha indagação diz respeito ao próprio
processo analítico, aos meandros que permitem ao sujeito, este eterno dividido,
reconhecer-se em seus ideais: Eu ideal, Ideal de Eu. E separar-se ou, no mínimo, prescindir do
lugar a que tal dupla o confina.
Em determinado
momento minha bússola apontou para a gruta “Agressividade em psicanálise,
Lacan”. O labirinto assume formas inesperadas, mas apesar da escuridão desta
gruta, saí de lá portando um feixe de luz:
“Longe de ataca-lo [o
Eu] de frente, a maiêutica analítica adota um rodeio que equivale, em suma, a
induzir no sujeito uma paranoia dirigida.” (LACAN, 1948/1998, p.112)
Este
trecho diz respeito à dimensão do imaginário e seu manejo na clínica. Um
princípio básico: a abstenção do analista em responder em qualquer plano de
conselho ou projeto pressupõe uma estratégia de não ataque frontal ao Eu do
sujeito que busca uma análise. Delineia o lugar de engano e o parentesco do Eu
com a loucura. No plano imaginário da transferência, o sujeito pode localizar
no analista as sucessivas identificações que o formam e armar-se em oposição a
elas. Pois se o que sou Eu está no outro (pequeno outro) então como posso Eu existir?
A ameaça de aniquilação torna-se iminente! Estaria aí o analista situado na posição
de eu ideal? Ainda na gruta “Agressividade...”, Lacan contou-me de uma paciente
histérica, que há meses resistia a qualquer tentativa de sugestão terapêutica.
Lacan viu a personagem que representava para esta paciente identificada aos
traços desagradáveis do homem pelo qual estava apaixonada, paixão esta colorida
pelo delírio (e como uma histérica apaixonada delira!); quanto à neurose
obsessiva, Lacan faz aí alusão às fortificações ao estilo de Vauban. Bom,
imagine um castelo cercado por um fosso, cheio de jacarés, cuja entrada
possível se dá por uma ponte levadiça... É possível que você tenha visto algo
semelhante em algum filme ou desenho animado. Pois bem, o Eu do neurótico obsessivo
é propenso a tomar a forma de tais fortificações. Haja estratégias e rodeios
para alcançar o sujeito dividido que ali se esconde! A orientação de Lacan
neste momento, na direção do tratamento do neurótico, é:
Evitar, através de
nossa técnica, [...] que a intenção agressiva no paciente encontre o apoio de
uma ideia atual de nossa pessoa, suficientemente elaborada para que possa
organizar-se nas reações de oposição, denegação, ostentação e mentira que nossa
experiência nos demonstra serem os modos característicos da instância do Eu no
diálogo. (LACAN, 1948/1998, p.111)
Portanto
a agressividade está no cerne do Eu. Há uma relação entre a agressividade na
experiência analítica e algo estrutural que Lacan nomeia como imagos do corpo despedaçado. Uma das
teses de Lacan é de que a agressividade seria uma tendência correlativa à
identificação que forma o narcisismo, que “determina a estrutura formal do eu
do homem e do registro de entidades característico de seu mundo” (p. 112).
Hieronymus Bosch – Detalhe do quadro “Jardim das delícias
terrenas”, 1500-1505.
“Que
negócio é esse de imagem de desmembramento corporal?” você me pergunta. Bem, não
desista, tente me acompanhar. É que ao sair desta gruta caí na viela “Como Marx
inventou o sintoma, Zizek” e encontrei algo bem interessante escrito por Marx:
“De certa maneira,
dá-se com o homem o mesmo que com as mercadorias. Uma vez que ele não vem ao mundo nem com um espelho na mão, nem
como um filósofo fichtiano para quem ‘eu sou eu’ seja suficiente, o homem se vê e se reconhece, inicialmente,
nos outros homens. Pedro só estabelece sua própria identidade como homem
depois de se comparar com Paulo como sendo da mesma espécie. E com isso, Paulo,
simplesmente ao se postar em sua personalidade paulina, transforma-se para
Pedro no exemplar típico do gênero homo.” (ZIZEK, 1996, p.308-309) [grifo
nosso]
Sim,
o homem não vem com um espelho na mão... Vou te contar, aquilo me soou muito
familiar, “coisa de Lacan”. “Deve ser por conta da influência de Hegel no
pensamento de ambos, Marx e Lacan”, pensei, e prontamente Zizek completou:
“essa breve nota
antecipa, de certa maneira, a teoria lacaniana do estádio do espelho: somente
ao se refletir num outro ser humano – isto é, na medida em que esse outro ser
humano lhe oferece uma imagem de sua unidade – é que o eu [moi] pode chegar à
sua auto-identitidade; a identidade e a alienação, por conseguinte, são
estritamente correlatas.” (p.309)
Pois
vamos lá: tente, por um instante, olhar para seu próprio corpo. Percebe o
quanto é impossível ter uma apreensão total de si mesmo sem um elemento
mediador? Ok, você vê braços, pernas, a barriga... e a nuca? O rosto? Este é,
ao nosso olhar, permanentemente inacessível, a não ser como imagem refletida. Narciso
que o diga! Em resumo: vemo-nos aos pedaços. Venha comigo, vamos voltar àquela
encruzilhada:
“uma unidade
comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser
desenvolvido. Mas os instintos autoeróticos são primordiais; então deve haver
algo que se acrescenta ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se
forme o narcisismo.” (Freud, 1914/2010, p. 18-19)
Este momento, que
marca um antes e um depois, sendo o Eu, ou a noção de uma totalidade corporal,
o que viria depois, é designado por Freud como narcisismo primário. Esta “nova
ação psíquica” não é uma pedra, mas está no meio do caminho entre o
autoerostismo e o amor de objeto e articula-se ao outro, ou melhor, à imagem do
outro. A beleza (e o inferno!) disso tudo é que em princípio é necessário
conhecer o outro para nele reconhecer-se como Eu. Estádio do espelho com Lacan,
acontecimento que pode produzir-se a partir dos seis meses de idade e que pode
ser compreendido como uma identificação, “no sentido pleno que a análise
atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97).
Segundo Lacan, o
infans tem uma imagem fragmentada do corpo, vê-se aos pedaços e isto tem
consequências. Ainda vivenciando estas fantasias de um corpo despedaçado,
fragmentado, encontra sua unidade a partir da imagem do outro. A análise demonstra
esta hipótese quando se reflete “no fundo das fixações mais arcaicas” (LACAN,
1948/1998, p. 108), hipótese que se mostra “regularmente nos sonhos, quando o
movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do
indivíduo” (LACAN, 1949/1998, p.100). É o que Bosch dá a ver com sua arte. Há
neste drama (que necessita do olhar do Outro para efetivar-se), uma antecipação
do psíquico sobre o fisiológico. Voltando para a encruzilhada, com Freud é
possível dizer que o Eu é o primeiro objeto da pulsão, tornando-se o reservatório
da libido:
Formamos
assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é
depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se
aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele
avançam (1914/2010, p.17)
Funda-se primeiro o objeto e depois o sujeito?
Ou o falasser funda-se a partir de uma divisão que o coloca a um só tempo como sujeito
e objeto da pulsão libidinal? O que você me diz?
Estou te deixando perdido?
Sim, sim, são os efeitos de se estar em um labirinto, não se preocupe. Não te
contei a princípio, mas trouxe na bagagem uma lanterna que sempre me ajuda
quando o assunto é psicanálise: Dostoievski. Veja, em “Memórias do Subsolo” o
narrador-personagem, que representa muito bem um neurótico obsessivo, derrama
todo seu narcisismo diante do leitor, verdadeira lição sobre o Eu e seus ideais.
Através desta obra é possível perceber, nas batalhas mentais travadas pelo
narrador com seus semelhantes, o fundamento paranoico do Eu, a bipolaridade que
Eu e Eu Ideal encenam e o assujeitamento em relação ao Ideal de Eu (essa
espécie de régua formada pelos significantes recalcados que constituíram a
imagem primordial do sujeito, e pela qual ele se mede). “O Ideal do eu é o
ponto de onde eu me vejo como amável” (QUINET, 2012, p.25). “Mas como é que
pode”, você me pergunta, “o sujeito ser assim, tão marcado pelo significante
antes mesmo de ter domínio sobre a linguagem?” Bem, é uma boa pergunta! Que me remete
à seguinte ideia: o sentido (o significado a significar o significante) vem
depois, à posteriori. E, independentes do sentido, os significantes primordiais
insistem...
E eu te pergunto:
aquilo que amamos/odiamos/invejamos/desprezamos em nosso semelhante expressa
coordenadas infligidas por nosso narcisismo? Narcisismo este que nos impõe um
Ideal de Eu impossível de se realizar? Eu diria que... que pena! O cartel
responsável por esta edição de Stylete Lacaniano está aqui, no meu ouvido, avisando:
o espaço acabou. Tenho de deixar-te agora. Quem sabe nos encontramos em outra
encruzilhada? Afinal, ainda tenho um bom caminho a percorrer até a saída deste
labirinto.
FREUD, S. (1914) “Introdução ao Narcismo”. In: Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia
e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DOISTOIÉVSKI,
F. Memórias do Subsolo. Tradução de
Bóris Schnaiderman. São Paulo: Ed.34, 2000.
LACAN,
J. (1948) “A agressividade em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1949) “O estádio do espelho como formador da função do
eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998.
QUINET, A. Os outros em
Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ZIZEK, S. “Como Marx inventou o sintoma”. In: Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.
[2]
Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
IF-EPFCL, EPFCL-Brasil/Fórum MS, membro do Ágora Instituto Lacaniano - MS.
Psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.