Aviso: assistir antes de ler.
Apesar da pretensão, não, não entendo nada de arte, tenho no máximo desconfianças... E desconfio que esse tal de Kieślowski (assim como Trier, referência fundamental no movimentado mercado do verniz cultural) seja um desses fazedores de arte, e que Decálogo I (primeiro média-metragem de uma série de dez chamada "Decálogo", cujo fio condutor são os dez mandamentos) seja um bom exemplo disto. Um diretor que consegue tocar o ser lá no âmago, lá onde, apesar da tentativa, não cabem palavras... é isso que sinto com esse cara!
Tudo parece dançar em harmonia melancólica nesse primeiro Decálogo, sobretudo imagem e música. O filme parece te olhar, te refletir, te chorar. O leite que se azeda ao tocar o café, a tinta que rasga o pote de vidro, prenúncios de que aquilo que resiste ao sentido e às fantasias que estruturam a realidade, está ali, à espreita! Há sempre algo passando a perna em nossas certezas, algo que por vezes nos faz tremer de dor e espanto. Por que, apesar das evidências em contrário, o maldito gelo tinha de se quebrar? A voz do quase anjo, doída e gelada, questiona: "Quem precisa saber quanto tempo leva para a Piggy alcançar o Caco? Não faz sentido." O pai não consegue responder, não há resposta. É diante do enigma da morte que o menino duvida de sua forma de entender a realidade, uma realidade que encontra seu sentido, sua verdade, nos números, na matemática, sentido este que lhe fora transmitido pelo pai. Um sentido pouco aberto às fantasias, afinal no mundo do pai 2 e 2 são quatro, e quantas vezes terei de evocar o homem do subsolo de Dostoiévski pra explicar que se é o humano que está em causa, 2 e 2 nem sempre somam 4?
Erra aquele que pensa que só é crente aquele que acredita em Deus. A Razão pode ser tão dogmática quanto a Religião. Mas instável como a vida, o gelo se quebra, e com ele, as certezas daquele homem. Resta a dor e quem sabe uma questão: ainda que uma máquina venha a ter a capacidade de escolha, assemelhando-se ao ser humano, seria ela capaz de sentir tão profundamente o non sense existencial?
Erra aquele que pensa que só é crente aquele que acredita em Deus. A Razão pode ser tão dogmática quanto a Religião. Mas instável como a vida, o gelo se quebra, e com ele, as certezas daquele homem. Resta a dor e quem sabe uma questão: ainda que uma máquina venha a ter a capacidade de escolha, assemelhando-se ao ser humano, seria ela capaz de sentir tão profundamente o non sense existencial?
"Amar a Deus sobre todas as coisas", este é o primeiro mandamento. É mesmo necessário impregnar a existência com Eros, com amor, essa coisa que tenta insistentemente preencher o vazio que a todos habita. E que atire a primeira pedra quem (sinceramente) nunca duvidou do porque disso tudo...